26.3.10

ordinário.

achei ontem que estaria morto,
que me descobriria plácido
mergulhado numa calmaria:
branca e pluma.

como seria deitar sobre a nuvem
mais imensa de todo o céu?
será que resistiria ao canto da terra,
ao corpo de chumbo que me prende,
que me encerra no erro?

será mesmo que o erro,
o que chamamos erro, é errado?

se devo sentir? já não sei.
se devo partir? quem me dera.
se devo sorrir? o que me resta.

achei que hoje acordaria,
mas permaneço em mim.

se devo sorrir? o que me resta.
o que completa minha permanência,
doce canção.

um dia todo vagão entra nos trilhos,
e os trilhos entram na partida.
as árvores acenam, os braços,
os bancos, a cidade acenam.

eu já parti muitas vezes,
cada estação me reserva outra,
por hora chego à calma
névoa do enfim.

olho a existência,
lembro dos segredo do mundo.
lembro como poderia ser melhor.

por vezes eu me prendo ao
corpo de chumbo e fico.
de olhos e alma fechados
não lembro de nada,

e me entrego, me rendo,
sorrio,
esqueço que um dia parti.

partirei tantas outras horas,
estarei morto e desacreditado
a maior parte da existência.

mas o corpo me faz sentir vivo,
e eu sofro o deleite de ser.

achei que ontem estaria morto,
mas cruzo-lhe o caminho,
ainda permaneço, até quando?
resta perguntar aos anjos que
seguram os cantos do mundo.

se devo sorrir? o que me resta.
o que me ilude e faz desacreditar
na infelicidade.
se vai ferir minha essência?
já não sei mais, não custa tentar.

quando as árvores acenarem,
basta fechar os olhos,
sentir apenas o vento correr.
o vento não acena, ele chora
ao meu ouvido.

nunca partiu, meu amigo?
desconhece o que sinto.
preciso ir: seu nome?

prazer; o meu, Amor.

20.3.10

imenso.

dizem que não dá,
que é impossível,
mas eu tento.

tento com uma
força imensa
mentir pra mim.

minto e reminto
sobre a mentira
contada.

me faço acreditar
que a verdade é
uma estrada que
posso retalhar.

refaço as curvas
com minhas mentiras.

minto e reminto,
banho-me com
uma verdade minha.

e sou forte.
sobre os meus retalhos,
sou forte.
se um dia estive em cacos,
reconstruo quem sou:
sou forte.

sou como o tempo,
sou indestrutível
e não há verdade que
me faça crer em tudo
que meus olhos veem:
sou forte.

sou.

15.3.10

de repente.

vai ver um dia a gente seja
mais do que futuros amantes.
vai ver que de repente,
como um cometa passa
pelo céu sem querer
ser fotografado,
o meu sorriso seja o seu.

e da minha boca sopre
o vento que traz sonhos
para suas madrugadas,
que traz a palavra certa
para a sua canção.

vai ver um dia a gente seja
mais do que amantes extintos.
vai ver que de repente,
como um menino acha
ouro na beirada do riacho
e esconde dentro das mãos,
a minha vida seja a sua.

e da minha boca sopre
o vento que bagunça
os seus cabelos longos,
que traz a voz à poesia.

de repente, tão logo, de repente.

8.3.10

como usar um dicionário.

abri um dicionário para
desvendar o mundo.
engraçado que descobri
saber um monte de tudo
sobre um monte de vazio,

de léxicos que só fazem
sentido em voz de gente
que não quer saber do mundo,
mas dedica-se ao passo
incerto de viver.

então, morar nas capas
de um dicionário,
nos volumes da Barsa,
nada importa.
morar na sala escura de
um quarto pequeno
na beira da universidade,
também não importa.

a caneta cheia de um
negro líquido de rancor
rasgando a inocência
do papel com suas palavras
silenciosassss e vaziassss,
não importa.
nada importa depois
que o tempo apaga,
que a lágrima borra,
que o sentimento vai.

importam só os verbetes
ressoando na voz doce
e grave e forte e mansa
e ecoante de uma garganta
rompendo o silêncio de
uma aula de gramática:

- professora, o que é vida?

e o dicionário é tão mudo
como uma madrugada embriagada.