30.4.08

plano perfeito - parte quatro.

[ler parte um, parte dois, parte três]

Taquaral, 11/02/08
Segunda, 15:00

Mariana sabia pouco sobre o que todo mundo sabia muito: amor. Não esse de filme que é incrivelmente perfeito e chato ao mesmo tempo, mas sim o amor da vida real (que não tem hora pra surgir, nem pra acabar; que não segue regras; que sofre e nem sempre acaba bem). "Sou inamável" gostava de dizer aos amigos e familiares, mas no fundo desejava o par-perfeito - este que, geralmente, só era escolhido após passar por uma extensa seleção.
Mas nessa tarde de fevereiro ela decidiu dar uma chance ao acaso, após receber um chaveco pelo Orkut.
Sentiu que era a sua vez.

*** *** *** *** ***

Cambuí, 11/02/08
Segunda, 13:20

Eduardo analisou friamente todas as opções e decidiu que ela era a mais vunerável. Como primeiro passo, era necessário conquistá-la e, para isso, lembrou de seus tempos de escola, quando inventar cantadas e frases de efeito era pura diversão. Bolou uma mensagem que soou perfeita nos ouvidos - confesso que depois de escrita, perdeu um pouco sua graça (frases de amor foram feitas para serem ditas a dois, a sós). De qualquer forma, sentiu-se cafageste, galanteador e com o ego nas nuvens.
Desligou o computador para tomar café.

*** *** *** *** ***

Brasília, 15/02/08
Sexta, 18:00

Depois de uns goles de água e murros na parede, Ricardo se sentia mais calmo. Voltou ao computador e trêmulo pelo que investigava, buscou no histórico da internet o Orkut do pai. Encontrou, viu a foto no canto superior esquerdo - queria derramar uma lágrima, mas se conteve (ainda não sabia se o pai era merecedor de pena, saudade e afeto). Entrou na página de recados, releu tudo levou um susto: a data. Ao contrário das expectativas, as datas sinalizavam que as tais mensagens eram recentes (após a morte de seu genitor). Sem entender buscou a página de recados da tal moça e levou o mesmo susto: as mensagens haviam sido respondidas após a morte do pai. Teve medo e alívio: seu pai não tinha uma amante, mas alguém estava usando o nome dele.

[ler parte cinco]

29.4.08

plano perfeito - parte três.

[ler parte um e parte dois]

Campinas, 09/02/08
Sábado, 11:30

Entraram ao mesmo tempo no portal Terra e viram a mesma manchete: "Parente de senador Hélio de Silva e Silva é assassinado nessa manhã". Mariana não deu bola e partiu para a parte de fofocas, já Eduardo se interessou mais do que devia - leu toda a matéria, teve uma idéia brilhante e mergulhou nela.
Sem achar matérias bombantes, ela foi comer torradas com café, mas ele passou a manhã rebocando seu plano frio e calculado que incluia vítimas que não conhecia. Era o crime que nunca bolou, era o criminoso menos preparado que poderia existir: a combinação perfeita, como cereja em cima do sorvete de creme.

*** *** *** *** ***

Campinas, 16/02/08
Sábado, 22:00

A presa e o predador caíram na armadilha: o amor. Agora era tarde, depois que a largada é dada não tem como queimar a saída - corrida é corrida, seja nas Olímpiadas ou na vida.

*** *** *** *** ***

Brasília, 15/02/08
Sexta-feira, 16:00

Ricardo, filho de Carlos Alberto, encontrou algo que nunca imaginou achar: o perfil do pai no Orkut. Primeiro, teve um arrepio, depois aceitou a idéia que o ele fosse um fanfarrão. Riu sozinho lembrando das piadas do pai, mas logo aquietou-se ao entrar na página de recados: havia uma outra mulher ali. "Meu pai tinha uma amante?", deu um soco na tela do computador e saiu correndo. Jurou descobrir e passar essa história a limpo.

[ler a parte quatro]

28.4.08

plano perfeito - parte dois.

[leia parte um]

Taquaral, 10/02/08.
Domingo, 10:30

Acordou e ligou o computador - seu vício. Mariana fazia tudo através da máquina: pagava contas, jogava boliche e poker, se informava sobre o mundo e, principalmente, encontrava seus pares amorosos. Já tinha saído com quatro caras que encontrara em sites de relacionamento e todas as vezes havia dado errado (fosse por que ele mentira na idade, na altura, na beleza ou por ter mal-hálito mesmo), porém ela ainda acreditava que encontraria sua alma-gêmea cibernética.

*** *** *** *** ***

Cambuí, 08/02/08
Sexta, 21:30

Eduardo criou um perfil num site de relacionamentos, mas não queria achar alguém pra namorar - não por enquanto. Tinha outras intenções, por isso trocou até o nome: era Carlos Alberto de Silva e Silva e ninguém suspeitava aonde tudo isso ia dar.

*** *** *** *** ***

Brasília, 09/02/08
Sábado, 10:39

Um tal de Carlos Alberto de Silva e Silva, parente de um senador, é assassinado.

[ler parte três]

27.4.08

plano perfeito - parte um.

Chorava debaixo da chuva - esta que molhava seu cabelo, sua roupa e lavava seus pés sujos de terra. Estava certa de que não havia volta: o fim chegara de mansinho, aos poucos, sem fazer barulho, enquanto estava tudo escuro, mas chegara e nada mudaria isso.
Levantou-se do chão, tentando achar coragem e o caminho de volta: nenhum vestígio, nenhuma alma-viva, nenhuma expectativa. Saiu correndo: mato. nada. mato. nada - não necessariamente nessa ordem. Perdeu o fôlego e a coragem, parou, pensou - sentiu lá dentro do coração que nunca conseguiria chegar em casa.
Pingo a pingo a chuva ia passando e a penumbra da noite tomava conta de tudo ao seu redor.
Deitou, a adrenalina estava abaixando e tudo passou a fazer sentido. Percebeu quão idiota havia sido ao se entregar inteiramente àquela idéia maluca. "Idiota, idiota, como você pôde ser tão cega?", se culpou várias vezes até entender que brigar consigo não levaria a lugar nenhum. Limpou uma lágrima que teimou em escapar do olho direito - estava decidida que não iria mais chorar (não enquanto estivesse perdida).
Cravou os dedos na terra molhada que estava fria e confortavelmente molhada. Começou cavar vagarosamente - a idéia não era criar um poço, e sim fazer daquilo uma terapia. Estava frio e seu corpo encharcado começava a tremer. Levou as pernas até perto do peito e as abraçou, numa tentativa de se aquecer (no fundo, sentiu-se mais afagada do que quente). Fechou os olhos e tentou imaginar um lugar bonito e uma cama bem aconchegante. Por fim, dormiu com os olhos bem cerrados de medo dos momentos-fantasmas que poderiam vir para atormentá-la.
Ainda a observavam de longe. Estavam apreensivos que mal respiravam, o peso da culpa começava a fazer efeito sobre as fracas mentes dos dois rapazes. Não tinha como voltar atrás e pedir perdão - estava feito, restava esperar o fim (próximo, por sinal).
- Podemos ir, ela apagou!
- Conseguimos!
Antes de ligar o carro, respiraram fundo e aliviados. Partiram rapidamente e logo sumiram na escuridão.

[ler parte dois]

26.4.08

máscaras.

Sinto o sapato grudado ao chão:
sem querer, mas com toda a força,
pisei num molusco.

Vejo-o disforme e sem vida,
com sua concha estilhaçada.
Sinto-me assassino e vítima:
poderia ser eu ali.

Sou como o caramujo:
secreto carapaças pra fugir
do que me dá medo.
Secreto-as aos montes
enquanto forem necessárias.

Ou até sentir que o mundo
pisou em mim e não resta
mais nada.

25.4.08

avesso.

acordei querendo ver estrela
mas só haveria
em mim.

24.4.08

quadrilha.

É a primeira vez que escrevo, antes só representava. Não sou ator, por aqui não existe essa coisa, vai ver por que todo mundo é um pouco disso. Eu moro entre a capa e a contra-capa de um mundo perfeito que vocês, humanos, pintam, colam, desenham, criam e leêm: o Mundo dos Livros.
Todavia, o fato é que nunca fui dos personagens mais queridos: sempre deixado de lado e um pouco esquecido. Disseram-me que não sofro de antipatia, mal-hálito ou feiura, meu problema é falta de enredo (eu sou aquele que acaba com o amor platônico nos últimos momentos). Pensei em mudar de rumo e cheguei a fazer umas pontas como mocinho, só que não funcionou, perdi o papel, o cachê e o pouco de fama que tinha. Fracassei também como bruxo, irmão mais novo e padre.
Cheio de frustrações na mala e vazio de expectativas, decidi voltar para a casa dos meus pais em Itabira. A viagem foi longa e exaustiva: cheia de frases mortas e outras personagens frustradas voltando para suas casas (no caso das palavras, iam parar no lixo doméstico de quem as proferiu um dia). Como na maioria dos casos, eu não fui bem recebido, não houve festa, surpresa ou afago, pois, por aqui, ter um filho rejeitado por todos os autores é muito vergonhoso.
Não suportei os olhares tortos e decidi fugir. Numa madrugada enquanto todos dormiam, executei o plano. Fui embora com dinheiro, sem orgulho e sem sonhos - estava em branco para qualquer oportunidade que aparecesse. Não apareceu. O pouco dinheiro que tinha pego antes de sair já estava acabando, não tinha mais como pagar hotel e passei a dormir num canto muito escuro debaixo de uma ponte.
Era outono quando ele apareceu e se compadeceu de mim - eu dormia coberto de papelões. Primeiro, perguntou meu nome e o que fazia. Eu, acordando do sono, respondi o mais educado possível. Sentou-se ao meu lado quieto, como se pensasse. Me disse que era escritor e iria me ajudar - com dinheiro, casa e comida? Não, com histórias. Pegou seu bloco, uma caneta que levava no bolso e começou a escrever linhas e linhas.
- É um poema pequeno, mas dá pra viver dele! - me disse após entregar o rascunho e antes de partir para sempre.

Caro Carlos Drummond de Andrade,
Sei que muito do que foi escrito aqui já é de seu conhecimento, mas era minha hora de retribuir o seu favor (não sei fazer poesia, mas aceite minha humilde prosa). Ainda sou grato àquela noite, na qual minha vida mudou completamente. É confortante saber que parte do que sou, foi construído por tão grande autor.
Acho de bom tom dizer-lhe como andam os outros: liguei esses dias para o João que confessou adorar os Estados Unidos. Ele também casou e teve dois filhos (Eduardo e Luísa). Já a Teresa nem pensa em marido - continua firme e forte no convento com seus terços e ave-marias. Outro dia, visitei o túmulo do Raimundo e do Joaquim, deixei flores e um pouco de saudade. Eu e Lili continuamos casados e muito felizes.
Com grande carinho,
J. Pinto Fernandes.


baseado no poema "Quadrilha" de Carlos Drummond de Andrade.

23.4.08

naturalismo.

Fingimos tolerância
quando o que mais
queremos é devorar
um balde cheio de
preconceitosaborcarnehumana.

22.4.08

verossímel.

Somos humanos, é fato.
Destes feitos em fábrica,
cheios de marcas
e pobres de essência.

Mecânicos até no que
julgamos natural:
articulações de aço
e fibras de carbono.

Seríamos assim pra sempre:
iguais, frios e sozinhos,
se não ocorresse você:
máquina-mulher.

Corria por seu corpo
o mais nobre sangue:
se antes era azul,
escureceu ao preto.

Guardava em seu átrio
os sonhos do mundo,
desejos escondidos
amaldiçoados pelo tempo.

Enfim, se apaixonou,
contrariando a lógica velha:
amor não é necessário,
ninguém mais ama.

Foi chamada de louca
pelos aristocratas e
definhou sozinha, no escuro:
ela e o maior amor do mundo.

Não tinha como fugir:
cabos a mantinham presa
ao sistema - com quem nunca falou,
ceiou ou bebeu um copo de diesel.

Morreu é certo.
Dizem que sonhou antes
com o mar, o céu e a lua.
Mas ela nunca tinha visto a lua.

No fundo, era difícil de entender,
pois ela não amava o outro.
Ela amava a si própria
e o encanto de poder sonhar.


à quem quiser ser máquina-dos-sonhos.

21.4.08

ensaio sobre nós dois.

Estou em um quarto pequeno de hotel barato, desses a beira da rodoviária e que parece perfeito para um eu-lírico ferido. Escrevo, como se nunca tivesse visto papel e caneta antes. Na verdade, escrevo um pouco e apago outro tanto, é uma história de amor e eu já perdi a prática: faz tempo que não vivo uma. Ainda sei o básico: Há o mocinho e a mocinha que se amam, mas o amor que dá certo não vende e não é bonito. Amor de verdade é aquele que passa por turbulências antes dos apaixonados viverem felizes para sempre, no estilo Romeu e Julieta - e, por incrível que não pareça, nosso amor foi assim.
Escrevo as dez coisas que ficaram por falar antes de você ir embora. Poderia listá-las, só que não pareceria romântico. Pensei em mandá-las uma a uma em cartas para você, mas seria perda de tempo: ao ler o remetente, logo jogaria todas elas na lareira. Mas escrevo-as para mim mesmo, como forma de consolo, às vezes imagino que você está ao meu lado lendo - não sei se chora, ainda não pensei como você reagiria, mas você me ama e me abraça forte.
Começo a escrever, esbarro sem-querer no café que está na mesa e caem algumas gotas no papel - parecem lágrimas escuras e antigas. Lembro-me da vez que, aos prantos, juramos amor eterno e dou risada. Rio da minha ignorância de achar que algum sentimento duraria para sempre, existe apenas uma coisa imortal: palavras. Quer dizer, elas definham também - a gente se acustuma com sua presença e elas vão embora, mas demora muito tempo para isso acontecer.
Espere, então para que eu estou escrevendo isso? Para eternizar essa minha covardia em te dizer poucas e boas? Pode até ser que me sinta melhor depois de pô-las no papel, porém continuarei sozinho. Solidão não passa com frases perfeitas, novos amores e noites bem dormidas.
Solidão é estado de espírito e não tem cura.

20.4.08

blues para voz cansada.

O que lhe traz aqui, W. C. Handy?
Por favor, sente-se e me conte:
como vão as camisas velhas
estendidas nos varais da vida?

Continuam, os pássaros,
voando longe, sonhando alto
e se perdendo nessas
infinitas estrelas que criamos?

Ainda tiram, do guarda-roupa,
a vontade ancestral de
lutar pelo que parece morto:
esse desejo chamado dignidade?

As estradas continuam
pintadas de branco suave,
ou o opaco negro dos olhos
já manchou sua beleza?

O vento que destrói sonhos,
já levou embora todas
as flores de magnólia
que não arrancamos?

Os bares sujos e velhos
ainda tocam o canto-ritual
dos ancestrais negros:
o meu querido Blues?

Quer saber, não responda nada.
Esse copo de whiskey é da casa.
Agora vá embora e não volte,
nem acompanho de St. Louis.

Cansei de acreditar nessa mudança
que não virá nunca.
Dói pensar que de nada adiantou
cantarmos até a voz ficar rouca.

O que preciso é de descanso
embalado em um último Blues -
ainda há leões presos em mim.
Um último que me mantenha vivo.

Blues para voz cansada,
amor esquecido,
emprego perdido,
alma dilacerada.

Venha, se souber, cante comigo.


em homenagem ao Blues, ao W. C. Handy, ao estado do Alabama, ao estado do Mississipi.

19.4.08

o homem de terno - parte final.

[leia a parte um, a parte dois, a parte três, a parte quatro a parte cinco]

Preciso de coragem para contar as próximas linhas, porém minhas mãos trêmulas impedem que eu escreva sem borrar - já rasguei quatro folhas de papel antes de terminar essa introdução -, tudo isso é fruto do meu medo. Não importa o que vivenciei, ainda me encolho debaixo das cobertas e digo o nome da minha mãe baixinho quando lembro dessa história. Sim, eu tenho medo de que, ao reviver esse velho causo, os seus personagens voltem para me assombrar.
Inspiro. Expiro. Deixo que o ar dessa manhã leve embora esse nó da minha garganta. Agora não tem volta, se cheguei até aqui, darei esse último passo. É importante dizer: sorriu maléficamente.

Gritei, como já foi dito, até perder o fôlego. Meu coração parecia estar em chamas. Não sei dizer se o que via era perverso, macabro ou os dois ao mesmo tempo. Balancei a cabeça, pisquei várias vezes, mas aquilo não ia embora - era real, material, vivo e intenso. Fiquei com medo e apavorado. Desviei os olhos para o chão: vi seus pés descalços sobre a grama orvalhada - as pequenas flores roxas pisoteadas pareciam gotas de sangue velho. Temia fitar seus olhos, apesar de sentir que estava me olhando. Foi então que vi as suas mãos, a casa, o vitral, seus filhos. É importante lembrar: não houve briga.

Desculpa, preciso parar por aqui: não posso revelar esse segredo. Se não, o que contarei para meus netos? Qual grande feito escondido terei feito eu, além desse? Entendam que não quero ser uma lenda urbana - um herói ou um martire da rua Oscar Leite. Temo em dizer, mas chegamos ao fim. Eu dei as pistas, a resposta está dada, basta encontrá-la, vivê-la e, quando com muita certeza, contá-la para suas futuras gerações. Ou então, fiquem com a versão de que tudo não passou da imaginação fértil de um velho sobre um tempo já esquecido.
Mas lembre-se: eu tenho certeza que estava sóbrio.

fim.

18.4.08

o homem de terno - parte cinco.

[leia a parte um, a parte dois, a parte três, a parte quatro]

Gritei, isso é fato dito, porém não importa agora o porquê. Quero ir direto para o final, apesar de toda a graça da história estar no meio, mas entenda que é importante deixar o melhor por último. E lembre-se: me olhava fixamente.

Confesso que nos primeiros dias após o causo passei um pouco de medo: dormi duas noites na casa dos meus pais (claro que não contei o motivo certo, falei que estava ali por saudade), mas, ao perceber que mais nada ia acontecer, passei a aceitar a hipótese de que tudo não passara de um sonho. Arranque essa página, jogue tudo na fogueira e me esqueça de tanto ódio, mas eu preciso adimitir que o fim desse meu causo é tão medíocre quanto tantos outros: foi sonho. Sim! Foi sonho e eu me convenci disso.
Passaram uma ou duas semanas de sossego e eu pude voltar a dormir bem, sair e voltar a hora que bem queria sem me preocupar com nada. E foi numa sexta-feira, enquando voltava a pé de uma reunião na casa de um amigo vizinho, que minha felicidade de areia foi ao chão mais uma vez.
Estava frio o bastante para congelar minhas mãos que se abrigavam nas luvas. Eu olhava para baixo mirando numa pedrinha que chutava durante toda a rua - já era a rua de casa. De repente escutei um assobio estranho, mórbido e desafinado. Parei, tirei os olhos da calçada e senti meu corpo inteiro bambear.
Era ele. Seu semblante transtornado me fez querer correr, mas não sai do lugar. Dessa vez não estava bem vestido, parecia vestir retalhos de um terno antigo.
- Você não sonhou. Você não sonhou. Foi tudo real. - disse essas palavras e vagarosamente foi embora.
Fugi o mais rápido que pude.
Não entrei em casa, nunca mais entrei naquela casa. Troquei todo conforto daquele sobrado por um apartamento, mas, por infelicidade, ainda passo pela casa do Joaquim pra ir e voltar do trabalho - só que evito olhar e até pensar naquele vitral.
Não dá pra esquecer essa história: depois daquela noite, Campinas se tornou um fantasma na minha vida.
Só mais uma coisa: os filhos dele não estavam dormindo.

[leia a última parte]

17.4.08

o homem de terno - parte quatro.

[leia a parte um, a parte dois, a parte três]

Às vezes gritamos de medo.
Às vezes gritamos de pavor.
Às vezes gritamos de alegria.

Nenhum desses era meu caso.
Eu gritei, pois não deu tempo de dizer mais nada.

Ah, só mais uma coisa: estava calado.

[leia a parte cinco]

16.4.08

o homem de terno - parte três.

[leia a parte um e a parte dois]

Acordei e meu olhos,
mal acustumados ao escuro,
criavam sombras e fantasmas
nas paredes do quarto.

Acendi a luz:
não havia ninguém
além de mim.
não havia nada
além das minhas coisas.

Com medo e ansiedade,
fui verificar toda a casa.
Pé após pé pisei no chão gelado:
nada, nada e nada.

Outro grito.

Era distante, mas nem tanto:
vinha do outro lado do quarteirão.
Abri a porta e corri pela calçada:
Nada, nada e nada.

Outro grito.

Apressei o passo.

Outro grito.

grito.


grito.


É bom lembrar neste momento:
Estava sozinho.

Virei a esquina.

MEU GRITO.

[leia a parte quatro]

15.4.08

o homem de terno - parte dois.

[leia a parte um]

Acabei de voltar do trabalho e, como toda manhã e tarde, passei em frente da casa do Joaquim - passei apressado, do outro lado da rua e ressabiado, depois daquele dia nunca mais terei coragem de encará-la frente a frente. Não por ser feia ou mal-assombrada, pelo contrário, é muito bonita. Imagine um casarão dos barões do café, pinte-o de branco sujo, coloque um jardim de grama e pequenas flores roxas na frente, uma grade baixa antes de tudo e um vitral redondo entre a casa e o telhado - este que é em formato de V ao contrário. É mais ou menos assim a tal casa.
Pronto, chegamos ao começo da história. Prepare-se para o surrealismo que será contado a partir daqui, mas é bom relembrar: estava de pé no jardim.
Primeiro, quero situá-lo: era uma sexta-feira à noite, cantavam modas de viola na festa do Joaquim e, aqui em casa, eu acabava de ler "O menino no espelho" enquanto tomava café meio gelado.
Pelo que dava para escutar, o cantor não era tão bom - perdia o tempo e usava muito glissando -, não faz meu estilo. Até tentei cantarolar uma ou outra melodia, mas por fim achei que a história do livro era muito mais interessante.
Uma, duas, três horas se passaram e a festa chegou ao fim - cessou a música, os convidados foram embora e meu sossego enfim chegara. Respirei fundo, passei as mãos no cabelo e desejei boa noite aos meus ancestrais falecidos. Apaguei antes de poder orar.
Dormiria a noite inteira se não fosse por um grito que ecoou pelo meu quarto inteiro.
Acordei e fui ver o que acontecia.

[leia a parte três]

14.4.08

o homem de terno - parte um.

É importante dizer antes de tudo: estava sóbrio. Não eu, nem você, mas ele - esse ele que margeia a história toda. Não o conhecia de rosto, apenas de nome, mas morava no mesmo bairro que eu. O quintal de seu casarão dividia muro com os fundos do meu sobrado. Era rico. Dizem que herdou tudo da herança de uma avó falecida, outros preferem a versão que é dinheiro de jogo, porém, de qualquer forma, vivia muito melhor que todos nós - vizinhos dele. Raramente punha os pés fora de sua casa, tinha mordomos que iam à quitanda, traziam o leite, compravam remédios e alugavam atores - esses últimos serviam somente para alegrar o tal senhor, como bobos da corte em um castelo medieval.
Tinha filhos e era viuvo (a esposa faleceu no parto do segundo filho). Dizem uns fofoqueiros que ele amava sua mulher o suficiente - nem ao ponto de se fazer de escravo, nem ao ponto de tratá-la como lixo. Outro boato diz sobre a sogra: nunca ousou entrar na casa do genro, ou por medo, receio e precaução, ou por falta de oportunidade (ele não estimava muita a presença dela). Seus pais faleceram há algum tempo, era filho único e não tinha tios.
Quase me esqueço de dizer que, às quintas-feiras, uma criada ia até o tintureiro retocar os ternos do patrão. O motivo era sempre o mesmo: toda sexta-feira ele dava uma festa, fosse baile de máscaras ou um saral, os convidados sempre pertenciam a mais nobre elite de Campinas.
Para que fique mais fácil, aqui vão-se os nomes: Joaquim, o 'ele' dessa narrativa e Stefano, eu que voz falo.
Lembre-se: estava bem vestido.
A história fica para outro dia, quando a pena estiver a mão, o tempo não estiver curto e o papel não estiver tão caro.

[leia a parte dois]

13.4.08

por tempo servimos.

Por tempo servimos,
mas passa. O tempo passa.
Somos como a terra velha:

As rodas até correm
por cima, mas não sangra.
Nada brota, há muito tempo,
nesse monte de pó:
ainda é vivo, mas está morto.

Morto para os homens
que decidem o que é
velho, novo, mutante.

Assim somos nós:
fazemos as regras
e depois nos queixamos.

12.4.08

ficção.

Pule este capítulo:
não tem importância.

Não nesse teu jogo
de gosto e desgosto
que insistes em chamar
de amor.

11.4.08

reflexo.

Me olho no espelho,
mas não vejo
quem eu queria ser.

É difícil pensar no futuro,
é difícil pensar em mim.

Esse silêncio me assusta
e me leva pra longe daqui.

10.4.08

peça perdão às pedras.

pare de encontrar defeitos
onde não há nada além
de frases perfeitas.

nem tudo na vida
demonstra falhas.
nem todos os sonhos
se escondem atrás
de muros de concreto.

peça perdão às pedras
que não cruzaram
o seu caminho.

9.4.08

configurações.

Eu como mais um pedaço.
De papel.

Essa velha mania
de ruminar celulose
me deixa com cara de bicho.

Até gosto da metáfora,
se não fosse pura realidade:

Todos somos bichos,
até que provem o contrário.

8.4.08

infinito, estrelas e números.

Vem, feche os olhos,
ainda temos o infinito inteiro
para contar.

Não sei quanto tempo
será necessário,
mas número a número
a gente desvenda o universo.

Na lógica das explosões de Hélio
e das supernovas tão frias,
a gente pode inventar
a nossa própria matemática.

Vem, vamos dar a volta nesse
oito interminável
e partir para esse fim esperado:
o colapso.

7.4.08

sorte.

Enquanto você procura
trevos de quatro folhas,
O sol insiste em nascer
atrás dessa neblina.
De problemas.

Sorte é saber enxergar
a metade certa da moeda.

6.4.08

luto.

Está tudo tão quieto
que dá pra escutar o coração bater
e toda essa dor percorrer o corpo.

Esse corpo que antes te abraçava,
não se alegra mais:
A graça dos dias se foi contigo.

Ainda dá vertigem olhar pro céu.
Lá onde as nuvens desenham seu rosto.
Lá onde a alegria terminou.

Vá, meu anjo, de encontro aos seus sonhos.
Pois aqui continuamos vivendo, mudando,
Tentando acordar desse pesadelo.

in memorian de Isabella.

5.4.08

gente que não sabe amar.

Dá pra ver lá no fundo dos olhos
que ainda resta um pouco
De vida.
De amor.
De mim.

Quase do outro lado do peito
dá pra sentir que existe
um coração
que bate.
que late.
que ama.

Olhando o passado
a gente entende que
ninguém estava
certo.
errado.
vivo.

A gente amava.
E o amor bastava.

4.4.08

filosofia do mundo atual.

Se os filósofos antigos vivessem hoje, esqueceriam essa babaquice de encontrar a origem de tudo, mas se preocupariam em amenizar essa morte gradual do mundo, conseqüência da nossa incessável busca por confortos e afeto - coisas não encontradas mais nos seres-humanos.
Se os filósofos antigos vivessem hoje, desistiriam de propor governos justos, políticas da maioria e direitos dos cidadãos - está mais que provado: são todas teorias utópicas que nunca se concretizarão. Não enquanto não soubermos dosar nossa ambição pessoal.
Se os filósofos antigos vivessem hoje, entenderiam que propor um tal 'mundo das idéias' não foi uma grande sacada, pois foi a partir desse que surgiram os padrões - de beleza, de riqueza, de inteligência, de vida - que, na sua maioria, são inalcansáveis, mas levam pessoas a desenvolver problemas psicológicos, como distúrbio alimentar e vício por consumo.
Se os filósofos antigos vivessem hoje, não falariam difícil ao ponto de parecerem loucos. Diriam palavras simples, que sá as mesmas que não saem da minha boca. Estas que não se apagam tão fácil do cotidiano, não se soltam dos fatos ruins, não cansam de serem pronunciadas e parasitam na tristeza dos outros:
- 'Tá tudo perdido.

3.4.08

prolixo.

Prefiro guardar minhas palavras
Num canto escuro da memória
A dizê-las inteiras, cruas e nuas
Para os pombos da praça.

2.4.08

marvel.

E eu me sinto o The Flash: termino tudo antes de começar.

1.4.08

primeiro-de-abril.

Eu toco saxofone.
Eu viajo toda manhã.
Eu tenho um carro vermelho.
Eu jogo bilhar num cassino.
Eu como chocolate holandês.
Eu sou campineiro.
Eu ganho mesada.
Eu canto muito bem.
Eu jogo bola na rua.
Eu moro num apartamento.
Eu sou a sua vertigem.
Eu não minto.

primeiro-de-abril.