30.11.07

sobre a ladra mirim.

Uma menina, sua ânsia de ler para afugentar os medos, uma Alemanha em plena Segunda Guerra, um melhor amigo, um papai e uma mamãe de criação, umas sacolas de roupa para lavar e passar, uma casa grande e sua dona, uma biblioteca, uns roubos,uns jogos de futebol, algunas repreendas, umas bombas, um judeu amigo, umas vidas, uns sentimentos, uma cidade e sua narradora: a morte.

É mais ou menos esses os elementos principais do livro "A menina que roubava livros" de Markus Zusak, uma história que lhe envolve do começo ao fim e faz pensar em várias coisas. É difícil não se sentir comovido com a história da rua Himmel e sua ladra de livros: Liesel, que nos conduz à uma outra visão da Alemanha Nazista: a visão alemã da história.
A visão de Liesel que, em muitas vezes, é otimista em meio a tanta desgraça.

Mais uma vez, comprei o livro um pouco pela capa - a neve, a árvore pelada e apenas uma pessoa no meio delas (com seu guarda-chuva vermelho): a própria morte, que se demonstra humana em muitos trechos: ela tem pena de levar algumas almas, ela fica triste, ela sorri, ela reflete e, o mais importante, ela só cumpre o seu trabalho.

Como sempre, Markus acertou na escolha de sua história.
Eu recomendo mais esse livro.
Compre e se emocione.

29.11.07

sobre sobreviver.

[PROPOSTA DE REDAÇÃO B - UNICAMP 2008]

Seguro, entre as palmas estaladas de minhas mãos, a folha que eu gostaria de rasgar e fingir ser só mais um pesadelo: é um diagnóstico, o pior de todos. É por ele que confirmo todas as minhas cruéis expectativas sobre a minha saúde e o meu futuro. Me aproximo de uma cadeira da sala, sento e choro toda a minha alma, pois ela já não vale nada. Sei que se eu acordar amanhã, terei um dia difícil pela frete, dói ser diferente num mundo preconceituoso e é pensando no amanhã que meu peito aperta. Leio e releio aquela carta do médico e me sinto cada vez mais medíocre, "E depois de tantas coisas boas e antes de tantas outras, minha vida tem que acabar assim? Porquê?" - eu grito aqui dentro da alma onde só eu posso escutar. É difícil aceitar essa realidade que enfia a faca no meu peito aos poucos e ri enquanto agonizo: eu morro por dentro, mas preferia morrer por inteiro - não quero aguentar me olhar apodrecer pelo espelho. Escorre uma última lágrima pelo meu rosto pálido e gelado: eu tenho AIDS.
Já está tarde o suficiente, me recosto no sofá confortável e durmo - eu mereço dormir depois desse soco no estômago.

Acordo no outro dia e sinto o gosto da verdade na boca - é amargo, quente e definhador, um suco denso que vou tomando aos poucos. Não me sinto bem, minha cabeça está rodando alucinadamente e desejo ficar em casa, mas não posso: uma pilha de processos pretendem passar pelas minhas mãos ainda hoje.
Me arrumo e fingo pra mim mesmo que tudo acabará bem. Saio de casa e dou uma boa fungada de ar puro, seguro-o por algum tempo dentro dos pulmões e depois solto aos poucos. Pego o ônibus e vejo num canto a placa "Lugar preferencial para idosos, gestantes, deficientes fisicos" e pixado à mão embaixo "aidéticos sintam-se a vontade." - me dá náuseas, a minha vontade é de gritar e chingar cada um que está nesse veículo, mas não o faço - eles não tem culpa.
"Ninguém nunca tem culpa, merda." eu me conforto enquanto, em passos pequenos, envergonhados e decisivos me sento numa das cadeiras especiais. Me olham, uma mãe comenta com a filha - "ele tem aids" -, um velho, antes sentado na minha frente, se levanta e mantém distância. "Aids não passa assim, meu senhor" tenho vontade de dizer-lhe, as palavras se calam antes de chegarem à boca.
Um a um, aquele ônibus se esvazia e volta a se encher, só uma coisa é constante: os olhares de nojo que se apontavam para mim. Não desci no ponto que deveria, não vou mais para o trabalho - quer saber? a papelada do governo que se exploda, eu vou cuidar da minha vida.
Eu grito, dessa vez o som sai e todos ouvem:
- Cuidem das suas vidas, seus vermes imundos.
Ouço uns murmúrios de risos, mas logo param.
O ônibus chega no terminal e todos descem, eu espero um pouco.
- Ei moço, você precisa descer. - o cobrador me avisa.
Eu levanto, olho as pessoas passando apressadamente do lado de fora, chego na porta.
- Desculpa, moço. - o cobrador se justifica.
As palavras martelam minha cabeça sem dó - "Desculpa pelo quê?". Não respondo, pois não há o que dizer. Abaixo a cabeça, olhos os degraus e desço do ônibus. Escuto meu coração bater quente no meu peito machucado, eu suo e minhas pernas tremem em aceitar a realidade: daqui pra frente eu estou sozinho, mas levo comigo a certeza que o meu dia seguinte pode não chegar.
Eu choro.
Eu tenho AIDS.
Eu sobrevivo.

28.11.07

sobre sua ilusão.

Perco o sono e me viro na cama. O colchão nunca pareceu tão desconfortável e o travesseiro está quente. Odeio essas insônias que me pegam de surpresa e fazem a noite parecer uma eternidade. Me viro de novo, essa minha movimentação contínua na cama deve ajudar a afugentar meu sono.
- Quero dormir! - falo para mim mesmo.
- Você não vai conseguir. - a minha consciência responde instantaneamente.
Desisto de tentar, me levanto, dou uma volta, mas não acendo a luz - prefiro manter meus olhos acostumados ao escuro, tomo um gole de água que assume um sabor indesejável de boca não escovada. Sento no sofá e penso. Penso. Penso. Não devo conseguir adormecer por esse tanto de pensamentos que rodeiam minha cabeça - os afugento chacoalhando minha cabeça, se vão, porém você fica - ah, você nunca vai embora. Fico imagino nossos encontros, eu e você o tempo todo. Me deito mais uma vez e tenho o sensação que você está ao meu lado. Te abraço, sinto o seu calor, o seu cheiro - eu adoro seu cheiro!
- Boa noite, meu amor - eu digo na sua orelha.
Te beijo no rosto e não durmo - não fecho os olhos nenhuma vez, para ter certeza que você não irá embora, pelo menos dessa vez.

27.11.07

sobre quatro pegadas.

Olhei para trás e vi várias pegadas minhas na areia, todos os dias bem cedo eu andava na praia - era minha rotina, mas dessa vez faltava algumas outras coisas - 4 outras pegadas, para ser exato, era o que faltava. Dei mais alguns passos, mas as lembranças não foram embora.
Escutei um latido vago no ar, tentei achar de onde vinha e entendi que era só ilusão - uma pena. Tirei os tênis e me deixei pisar na areia ainda gelada, a maré ia e vinha e, as vezes, molhava meus pés - eu ria, eu corria, eu sentia - a falta do meu companheiro.
Cavei ao meu lado as outras 4 pegadas que faltavam, para ver se melhorava essa dor de culpa. Nada, ainda sentia um vazio aqui dentro.
Sentei encima d'uma folha de bananeira que dormia sozinha perto do mar. Eu me sentia sozinho e essa sensação não passava (e jamais vai passar). Abro os braços na espera de que ele pulasse no meu colo e se acomodasse entre minhas pernas e minha barriga, mas ele não veio e, em seu lugar, senti o vento bater contra meu corpo como consolo.
"Foi culpa minha, eu sei!", me repreendia de hora em hora, achando que assumir a culpa melhoraria meu dia, porém só piorou meu humor: deu vontade de chorar, mas segurei as lágrimas dentro dos olhos - tentando sufocar minha alma.
Levantei e corri sem direção pelo que restava da praia. Joguei nas ondas a minha máscara de tentar ser forte e chorei até soluçar.
- Eu preciso de você - gritei pro mar, pro mundo, pra areia - que guardava dentro dela as pegadas dele.
Derrotado, deitei na calçada de barriga para cima e vi sua silhueta nas nuvens - sim, era pro céu que ele havia ido. "Porquê?", eu me perguntava quando uma senhora que caminhava me cutucou.
- Você está bem, meu rapaz?
Me levantei e fingi um sorriso.
- Claro! Só um pouco cansado.
Voltei para casa sozinho, assim como cheguei na praia, mas a saudade do meu cachorro me acompanhava - marcando no asfalto as as quatro pegadas que faltavam.

26.11.07

sobre as férias.

Essa sensação de não ter que fazer nada é muito boa.
Sim, as férias chegaram. Finalmente.

25.11.07

sobre ser o mensageiro.

Sempre que não preciso arrematar os livros que a escola pede, gosto de ler um ou outro best-seller ou clássico por conta própria - é uma diversão que me desliga, por algumas páginas, do mundo real que eu não posso inventar.
Um dos meus mais recentes livros de cabeceira eram o "Eu sou o mensageiro" de Markus Zusak que soma elogios pelo seu "A menina que roubava livros". Mas falemos sobre o "Eu sou o mensageiro" que traz nas suas páginas uma fascinante e diferente história que te envolve do começo ao fim. Confesso que antes de ler o resumo do livro, já queria adiquirí-lo só pela capa que tem uma arte gráfica brilhante e muito convidativa: senti que ele seria meu preferido - e por enquanto é.
O livro em primeira pessoa, narra a história de Ed Kennedy, um perdedor de marca maior que num belo dia intercede um assalto a um banco. Desde então ele começa a receber cartas - áses do baralho - pelo correio, cada um com alguns endereços e mais nada. Ficava nas mãos do loser descobrir o que fazer em cada lugar - ele era um mensageiro que não sabia o que dizer.
Uma história fascinante que não lhe decepciona no fim.
Está com tempo livre? Aproveite e compre esse ótimo livro.
Nem que seja só pela capa.

24.11.07

sobre tudo que eu queria.

Meu coração estava dando pulos; uma gota fria de suor desceu por toda minha testa e parou na sobrancelha - eu não me importava com ela, eu estava muito mais concentrado no que ia se passar depois; minhas mãos ensaiavam rapidamente cada um dos movimentos; eu era o próximo e estava apreensivo por isso.
Falaram meu nome, era a minha vez.
Só eu me levantei, ninguém estaria de pé ao meu lado para me dizer o que fazer. Fechei os olhos antes de qualquer coisa: respirei fundo; orei; senti que todos os dias de treino valeram a pena - estava confiante pelo que iria fazer; criei coragem para dar os passos em direção a um bom começo ou uma estréia ruim - sentia dentro do meu coração que daria certo.
Não tinha volta, não tinha para onde correr.
Segurei as baquetas com uma segurança que nunca imaginei ter - eu estava tranquilo. As grandes teclas daquela marimba me pareciam ser velhas conhecidas - as cumprimentei, mas elas não me ouviram; todos me olhavam esperando a primeira nota e eu esperava que alguém a tocasse, mas desta vez a responsabilidade era minha: eu tinha que emocionar.
Toquei o primeiro 'sol' e todo o resto da música sem parar nenhuma vez, diferente de muitos outros ensaios; o silêncio contemplava cada acorde novo que aparecia na partitura; naqueles minutos em que fiquei de pé, eu era o poeta e não precisei dizer nenhuma palavra.
Um 'ré' último anunciou o fim de um percurso inteiro que eu percorri; fiquei, por alguns segundos, estático pensando na minha boa apresentação; logo vieram as palmas e a sensação de dever cumprido, mas ainda faltava uma coisa: eu sabia o que era, ele sabia o que era.
Eu o olhei e pude ver dentro de seus olhos encharcados a minha maior alegria: a felicidade de meu pai e isso valeu mais do que mil notas certas num concerto.
Era o meu e melhor prêmio daquela noite, talvez da minha vida toda.

23.11.07

sobre o céu.

O céu está lindamente nublado assim como o meu humor. O meu amor. A minha vida.
Sou eu que estou mudando e preciso me conformar com isso. Até amanhã tudo terá acabado - eu espero, pois amanhã é o dia - o meu dia. Estou tranquilamente apavorado pelo que vai acontecer:

"Vai dar certo" eu me convenço de hora em hora.
"Vai dar certo" tentam me convencer de hora em hora.
"Vai dar certo" eu digo para todos que me perguntam.
"Vai dar certo" meus ouvidos estão cansados de ouvir.
"Vai dar certo" o cinza das nuvens me diz.

O céu continua nublado, mas aqui dentro...
Ah, aqui dentro minha alma sorri.

22.11.07

sobre gavetas.

Dei para arrumar as gavetas da cômoda e do armário do meu quarto e arrancar de lá todas as inutilidades que guardo por tempo ilimitado. É verdade, tenho que confessar, eu tenho uma mania de guardar papéis com lembretes - para mim mesmo, começos ou finais de livros que um dia escreverei, letras de músicas que comecei a compor e, na sua grande maioria, pensamentos alheios que um dia fizeram sentido - ou ainda fazem.
E foi entre uma folha rasgada e um bilhete dobrado que eu li o quê eu mais queria dizer nesta tarde um pouco fria de novembro: "Não tente entender, o mundo dá voltas e você vai sobreviver".
Foi um pouco conflitante saber que as palavras que eu mais queria ouvir naquele momento, foram ditas por mim mesmo há algum tempo. Me senti em um daqueles filmes que o cara volta para o passado e deixa algumas pistas para ele mesmo sobre o futuro. Todavia, foi aliviador ter na língua as palavras que eu não conseguiria pronunciar sozinho.
Minha cabeça já está um pouco menos pesada, mas ainda seguro bem firme o pedaço de folha sulfite que salvou meu dia - não quero perdê-lo em algum canto de gavetas (cheirando lembranças) mais uma vez.
Sinto que o mundo está girando: eu vou sobreviver.

21.11.07

sobre a velha falta.

Hoje não estou dado às conversas, quero ficar no meu (e só meu) espaço sem interrupções, por favor. Vou colocar apenas uma música no MP3 player, para ouví-la várias vezes enquanto estudo. Sim, me deu uma repentina vontade de mergulhar nos livros - na verdade, preciso revisar o conteúdo para as provas que começam amanhã. Quero escrever um livro inteiro, mas não acho tempo suficiente para me dedicar ao projeto. Desejo ler o máximo de livros que eu conseguir e, depois, resumí-los do meu jeito.
Tudo isso para suprir essa falta, sim aquela a velha ausência de alguma coisa, que eu não sei o quê é, voltou para acabar com minha constante felicidade.
Por que esse misto de vontade e falta do que querer é tão agoniante?
Preciso tomar um banho e deixar que a água leve pelo ralo todo esse meu humor estranhamente confortante.

20.11.07

sobre um sabor amargo.

Um gosto ferroso inundou todo o seu paladar e não era sabor de sangue - não cheirava e não tinha cor de sangue, mas estava lá e não iria se dissipar tão cedo. Engoliu mais um pouco daquela saliva quente e estranha, aproveitando cada gota do líquido viscoso. Flávio nunca tinha provado daquela sensação, porém tinha certeza do motivo de tudo aquilo: e saber só deixava sua boca cada vez mais amarrada.
Colocou a cabeça entre as pernas, tentando esconder as lágrimas que recobriam suas bochechas - ele preferia ter apanhado a levar aquele soco na boca-do-estômago da vida - a vida é má o suficiente para acabar com a vida de qualquer um. O corpo ficou cada vez mais mole e sem motivação para se levantar daquele degrau da praça. Gritou, mas o som permaneceu quieto em seu peito. Deixou que uma ave pousasse em sua cabeça, sentiu uma massa densa se estabelecendo junto a seus cabelos: era seu prêmio de consolação.
Fazia frio naquela tarde de Junho e ele não usava casaco, mas não precisava - sentia o calor que vinha de dentro da sua alma magoada e viva. Engoliu mais uma porção daquela substância se instalara na sua boca - continuava estranha e deliciosamente consoladora.
Era o sabor amargo da verdade que ele nunca esperou saber, era o sabor de um coração que implorava por ser arrancado do peito.
Era a dor de perder um filho.

19.11.07

sobre esse vazio.

Me sinto vazio. Vai ver a culpa é da sua falta - mas falta de que? É isso, me sinto vazio por não sentir falta de nada. Enquanto as coisas vão de vento em polpa, não nos expressamos muito bem, a felicidade não é tão poética como a dor - a dor de amar, de perder, de existir. É a dor que nos faz viver. Viver para buscar a felicidade.

É, deve ser por isso que me sinto assim.

18.11.07

sobre Fernanda.

Por mais que soubesse que era preciso dizer palavras de consolo, Fernanda não tinha o que falar - uma sensação que a machucava por dentro. Ao observar que todos a olhavam, ficou apreensiva e com vontade de sair correndo, mas não podia - as pessoas estava ali para escutá-la.
- É a vida e sua intrigante injustiça. - "Droga, não era para falar isso", ela se culpava pela frase mal-feita que acabara de pronunciar.
- Coitada, está muito abalada... Não está conseguindo nem raciocinar direito - comentava-se uns com os outros.
"Preciso falar mais alguma coisa, eles estão esperando", Fernanda esboçou um pequeno discurso mentalmente.
- Prezados amigos e amigas, sei que estão aqui pela mesma razão que eu estou, e por isso dói muito. Nesta tarda cinza com garoa viemos aqui para homenagear uma das pessoas mais honrosas que eu já conheci: meu pai.
Ela fechou os olhos tentando achar forças para as próximas palavras; uma lágrima se cristalizou na bochecha rosada da pobre garota de dezessete anos.
- Meu pai fez o seu melhor sempre e, com muito amor, contruiu uma família. Hoje, quero agradecê-lo pelo seu esforço. Obrigado pai.
Se ajoelhou ao lado caixão posto no meio da sala, orou silenciosamente algo que ninguém escutou e chorou toda a sua tristeza. Um arrepio percorreu sua pele - era o frio daquela manhã de Julho, mas ela desejou que fosse seu pai a segurando no colo para sempre. Era uma sensação que ela nunca esperou sentir.

17.11.07

sobre o supermercado.

Somente naquela tarde não havia congestionamento no trajeto entre a casa de Hugo e o supermercado - talvez fosse um sinal que alguma coisa iria acontecer, mas ele nem se importou. Em tempo recorde, 15 minutos, ele já havia estacionado o carro e se dirigia à porta principal quando escutou um grito.
- Todo mundo pro chão, isso é um assalto.
Seu coração queria pular para fora do corpo.
Ele estava a alguns metros do ladrão e apenas uma porta de vidro os separava.
Se olhavam, mas não se reconheceram.
Hugo por um pequeno instante sentiu náusea, mas logo se recuperou ao escutar um tiro: não era em sua direção, era para o teto - só para assustar. Sem pensar, ele saiu correndo em busca de socorros. "Mas que cara burro, assaltar um supermercado cheio em plena tarde? Ele pensa que vai conseguir alguma coisa com isso?", achou um orelhão e ligou para polícia.
Lá dentro, o jovem de uns 25 anos continuava gritando e gesticulando com a arma na mão.
- Eu quero todo o dinheiro e rápido! Se não essa atendente morre! - apontou a arma para uma das moças que ficam no caixa.
Foi entre o assaltante receber a penúltima e a última sacola de dinheiro para seis carros da polícia chegarem e bloquearem a saída.
Hugo observava tudo de dentro do seu carro parado do outro lado da rua. Ele pressentiu que mais surpresas estavam por acontecer, mas ignorou a sensação.
- Saia do supermercado com as mãos na cabeça, você não tem como escapar!
O assaltante, que mantinha a arma na cabeça da mulher, pensou em suas possibilidades e percebeu que não tinha escapatória. Ele sabia, mas só ele sabia que a arma não tinha mais munição. Decidiu apelar.
- Eu não saio e vocês não entram, se não eu mato essa pobre coitada!
Os guardas conheciam mais de armas do que o infeliz imaginou - logo que ele balançou a pistola, os policiais perceberam que não havia bala no gatilho.
Decidiram entrar.
Hugo ficou tenso dentro do carro, sentiu seu próprio cheiro do medo.
Ouviu outro tiro.
Em uma jogada arriscada, o bandido carregou a arma e disparou, mas, ao contrário de sua espectativas, havia uma ultima bala no pente. Hugo sentiu seu corpo estremecer: o cano da arma não estava apontado para a cabeça da mulher, mas sim para a própria cabeça do bandido azarado.

16.11.07

sobre o amanhã.

O tempo é uma das mais intrigantes questões, por isso é a base de tantos estudos. A origem da vida na Terra, por exemplo, está em função do tempo: quanto mais velha ela for, maiores são as chances da teoria de Oparin ter acontecido. Ou então, aquela que é a maior de todas as questões, quanto dura o infinito? "Oras, dura uma infinidade de tempo", é pode ser, mas quanto dura essa tal de 'infinidade'? É tão complicado pensar sobre isso, que até dá nó nos pensamentos.

Ao invés de pensarmos no tempo apenas em dimensões tão grandes, falemos sobre sua influência no nosso cotidiano.
Começando pelas horas - uma convenção que dividiu o tempo de um dia inteiro em 24 partes iguais. Nos dias atuais, é quase impossível viver sem elas, pois baseamos toda a nossa rotina e agenda nelas! Imagine-se chegando para seu chefe: "Podemos marcar a reunião de amanhã quando o sol estiver perpendicular à Terra?", seria um caos tremendo.
Existe ainda as classificações temporais: o momento em que eu comecei a escrever essa linha já é passado, o presente fica por conta de você que lê o texto agora, o futuro é o que acontecerá depois.
Mas o futuro nunca chega. Explico: O futuro é sempre o por vir e ao se realizar, perde sua característica fundamental, tornando-se presente. O futuro é uma convenção na qual estruturamos nossos sonhos: tudo acontecerá amanhã - "Amanhã eu estudo", "Amanhã eu resolvo isso", "Amanhã é o dia". O 'amanhã' é um lugar seguro para se estar, pois no 'amanhã' só acontece o que a gente quer.

E pensar que eu perdi meu tempo para chegar à nenhuma conclusão.

15.11.07

sobre viver de verdade.

Ele não se sentia bem, seu humor estava confuso, assim como suas idéias. Ele estava cansado da estável perfeição que se encontrava: as coisas davam certo e, quando não davam, se confortava pensando na próxima vez. Ele queria ousar, dizer não, viver de verdade.
Heitor havia decidido mudar de vez.
Encarou os fatos e decidiu deixar toda a sua rotina por um dia e poder ser ele mesmo. Logo de manhã, ele abasteceu o carro e saiu a procura de nada.
"O melhor da vida é não ter destino".
Decidiu pegar a estrada e ir para onde seu volante mandasse.
"Quanto mais longe melhor".
Passou em alta velocidade as árvores que beiravam o acostamento, abriu o vidro e deixou que o ar daquela manhã clara e linda enxesse seus pulmões.
"Por que eu nunca fiz isso?"
Começou a cantar uma ou outra canção do seu jeito: sem rítmo, desafinado e com emoção.
Virou em uma bifurcação pouco conhecida.
Trocou de música.
Se sentiu sozinho: ele, seu ego e seus sonhos.
Estava na hora da primeira parada: tomar café-da-manhã no posto. Ele sabia o que iria pedir - o mesmo que seu pai pedia quando paravam no meio de qualquer viagem -.
- Um pingado, um pão-de-queijo e um pacote de bala-de-goma.
O cheiro do café-com-leito era de infância e o sabor, de lembrança.
De volta ao carro, sentiu um pouco de peso na consciência de não ter ido ao escritório.
"Se eles estiverem se perguntando por mim?"
Tentou esquecer do trabalho.
"Eu não preciso daquilo, olha onde eu estou!"
Mas a dor-de-culpa matava-o por dentro.
"Preciso trabalhar".
Engoliu uma bala-de-goma à seco.
Se conformou em voltar.
Voltar para sua reconfortante perfeição.

14.11.07

sobre solidão.

Abri a porta e entrei em casa; a minha roupa cheirando a escritório me dava ânsia; senti a estranha sensação de que alguém me observava: era meu cachorro que veio me pedir um carinho. Abaixei, estendi a mão sobre a penugem densa do animal, cocei a sua cabeça e dei-lhe um beijo. Faltava-me forças para levantar do chão, pois minha cabeça girava em uma velocidade alucinante e eu senti que iria desmaiar, mas me restou um pouco de coragem e eu cheguei ao quarto. Me troquei, me deixei sentir a brisa da noite, me amei - já que ninguém fazia isso por mim.
Agora, abraçado à mim mesmo, sentia o pulsar do meu coração; falei meu nome baixinho tentando imaginar uma outra voz - um sussurro feminino, quem sabe. A foto da parede (que era dos meus pais) sorria para mim - como forma de consolação. Eu não sorri, não era preciso para entender que eu os queria de volta. Eu não senti, por mais que a foto me desse tristeza em outros dias, hoje eu não iria chorar, por que eu estava confiante o suficiente para entender meu destino inviolável: a solidão.
Me joguei encima da cama de braços abertos, mas a sensação do abraço continuava impreguinada na minha pele.
Era a vontade de amar.

13.11.07

sobre guarda-chuva.

Chovia forte, era uma destas tempestades de verão.
Pra variar, eu estava na rua e sem guarda-chuva.
As gotas violentas molhavam toda a minha roupa, até pareciam pequenas bolas de fogo de tão ardidas que encostavam em mim. Corri, como se eu fosse vencer alguma maratona, mas não cheguei a lugar nenhum. Nada, nenhuma loja que pudesse me abrigar, estava sozinho.
Ou quase isso.
Na esquina, sentada entre uma lixeira e uma casa, vi uma menininha vestida por um guarda-chuva. Ela não chorava, apesar de parecer sozinha. Apenas aguardava que o céu parasse de despejar água sobre sua cobertura vermelha.
Um vermelho lindo que contrastava perfeitamente com o cinza escuro do céu.
Me aproximei, ela não me notou.
Seus olhos estavam concentrados em ver seu reflexo molhado em uma poça suja.
Chovia forte ainda.
Agachei ao seu lado.
- Ei, menina.
Ela não respondeu, mas me olhou.
Sorriu, ela não tinha um dos dentes-de-leite da frente.
- Você está aí?
Ela gargalhou.
- Oi, seu moço.
Sim, ela havia me escutado.
- Onde eu consigo um desses aí?
- Um guarda-chuva?
- É.
- Ganhei, eu acho. Estava por aí e eu peguei.
Uma pequena ladrazinha.
- Ah, sim. E está fazendo o quê aqui?
- Sentada? Estou esperando.
- Esperando? Quem?
- Meu pai.
Ela fechou seu sorriso, parecia ser muito mais velha agora.
- E ele volta quando?
- Não volta, eu sei. Ele se foi para sempre, mas minha mãe me disse que é mentira.
Chovia forte ainda.
Eu estava confuso.
- Mas então por que você o espera?
- Ele não vai voltar, mas está aqui.
- Aqui?
- É, lá em cima me olhando - ela sorriu com os olhos - e está com saudades, eu sei.
- Sabe? Como?
- Sei porque ele está chorando.
Chovia forte ainda.

12.11.07

sobre uma pequena caixa.

A noite estava densa lá fora e aqui dentro ela se preparava para seu ritual noturno.
Os olhos cansados daquela pobre velha se fixaram na mobília antiga que enfeitava o quarto, se aproximou dela.
Respirou fundo. Uma, duas, três vezes.
Era muito importante aquele momento.
As mãos enrrugadas abriram suavemente a primeira gaveta, no meio das peças de roupa havia uma caixinha - pequena, cor de madeira velha, cheiro de memórias.
Respirou fundo. Uma, duas, três vezes.
Ela queria chorar, um choro angustiante que vinha da alma.
A sua alma estava cheia de amor e solidão que se colidiam lindamente.
Ainda com a caixa na mão, falou um nome bem baixinho, "Adolfo", era seu marido falecido - vai ver era por ele que ela queria chorar.
Sentou-se na cama, tentando se convencer que aquilo era o mais normal possível.
Tirou a tampa de mógno da caixa, dentro dela havia duas fotos antigas do seu casamento.
De repente uma música começou a soar de dentro do porta-jóias, era uma valsa linda e serena.
Respirou fundo. Uma, duas, três vezes.
Se levantou, forçou um diálogo imaginário com seu falecido esposo.
Começou a dançar valsa, sozinha.
Os passos exatos, o corpo ereto, e a sensação que havia um outro corpo colado ao dela.
Era a sensação de ter o marido mais uma vez, pela última vez.

11.11.07

sobre chegar em casa.

Abri a porta de casa. Senti o aroma de torta: estava na hora do jantar.
- Filhos? O papai chegou!
Logo todos os três vieram correndo me abraçar.
Os abracei, como é bom sentir aqueles pequenos pedaços de mim envoltos nos meus braços.
Fechei os olhos e desejei que durasse a vida inteira.
Se pudesse, desejei que durasse toda a eternidade.
- Que saudade, pai.
Pai, era assim que eu me chamava naquela casa.
- Você chegou tarde. Eu queria que você tivesse me ajudado com a lição.
Um frio percorreu minha espinha. Eu queria ficar todas as horas do dia com eles, mas era necessário ir trabalhar.
Mas eles não entendem. Eu também não.
O terceiro não me disse nada e eu estranhei.
"Justo ele que é o mais falador dos três? Algo aconteceu."
- O que aconteceu, Henrique?
Ele disfarçou, soltou minha perna e se fez de forte.
- Nada.
Ele não iria falar, não na frente dos outros.
Era hora de ficar sozinho com ele.
- Podem ir brincar, mas eu quero conversar com vc, Rique.
Ele ficou um pouco mais. Nos sentamos: eu no sofá, ele em mim.
- Filho, você está meio triste. Conta pro pai o que foi.
- Ah... Você sabe.
Saber era o que eu mais queria.
- Eu sei filho, mas conta pra mim. O que aconteceu?
- Não era nada, mas você não disse que estava com saudade de mim.
Era isso? Era saudade, só isso?
- Filhão. claro que o papai sentiu saudade de você! Eu sempre sinto.
As palavras mágicas, eu as havia dito.
Ele abriu um sorriso e deixou que o brilho inundasse seus olhos.
Ele estava feliz de novo e voltou a brincar.
- Te amo, pai.
Mais uma vez, eu era o PAI.
E isso me confortava.

10.11.07

sobre a musa do metrô.

Eu estava sentado em um banco no fundo do metrô, comendo batatas fritas e lendo. O jornal daquele dia trazia as notícias que meus ouvidos já estava formigando de tanto escutar:
Morte, dor, sofrimento, o fim do mundo.
É chato saber que ninguém mais bota fé no mundo e eu sou um deles.
O metrô chegou na Estação da Sé. Muitos saíram e entraram.
Eu olhei na direção da porta e ela olhou pra mim. Eu pisquei e sorri.
A batata-frita ficou sem graça e gosto, perdi a vontade de ler.
A minha cabeça insistia em rodar me deixando sem ponto de gravidade.
Achei que iria cair, mas estava sentado: uma sorte.
Sorri de novo, ela nem se quer me olhou.
Ela não iria me notar, ela não me queria.
Droga. Voltei pro meu mundo das palavras.
Ela não iria vir até mim e nem podia, era só uma camiseta vermelha.
Surrada, mas linda.

9.11.07

sobre rasgar memórias.

Cansei.
Deve ser por isso que minhas semanas têm ficado cada vez maiores sem atrativos.
Preciso amar. Deve ser isso. Só pode ser isso.
Faz um ano que não me apaixono, falta de prática? Duvido.
É medo mesmo. Medo de se repetir tudo que aconteceu.
Eu jurei pra mim mesmo que seria ela, só ela.
Eu a amava, bastava para ser feliz.
Mas.
Um dia, depois de uma briga feroz, eu decidi ir embora.
Na verdade, ela foi embora.
Eu só fiquei olhando, tentando me convencer que era um sonho.
Eu não a vejo mais e ela não olha na minha cara.
Nós fomos feitos um para o outro.
Porém a perfeição estragou tudo.
A perfeição sempre estraga: quando as coisas ficam suficientemente boas, acontece uma outra que estraga tudo.
Porquê?
Onde você está agora, além de aqui dentro de mim?
Eu faço isso pra esquecer. É, pode ser. Prefiro me enganar assim.
Eu não errei, dói menos mentir.
Hoje é o dia.
O dia de rasgar minhas memórias velhas.
É hoje o dia.
A vida continua.

8.11.07

sobre Carlos.

Carlos era escritor e não sabia nada sobre o mundo. Era como se ele vivesse nas suas histórias de ficção toda sua vida. Nenhum dos fatos cotidianos eram absorvidos sem antes serem misturados a histórias inventadas por ele. "Uma árvore caiu com a chuva", logo ele pensava num deus grego rompendo com o caule da coitada. Vai ver era por isso que seus poucos conhecidos preferiam manter distância.
O seu melhor livro vendeu um bocado de cópias, chegou até a terceira edição, o título da obra era "O cotidiano mirabolante", a história de um rapaz que vê na arte sua salvação do mundo que não o compreendia: a pura literatura romântica de um personagem que ele conhecia muito íntimamente: era uma auto-biografia.
Ontem, Carlos decidiu mudar sua forma de ver o mundo. Começou por aceitar uma das verdades incontestáveis: a Terra é redonda. Pois até ontem ele tinha sua própria teoria que o nosso planeta era uma ilusão mantida por uma máquina - no estilo Matrix. Decidiu também começar a comprar roupas, pois ele só usava roupas que tinham sido de seu avô paterno: seu ídolo. O velho cursou, durante seus 80 anos, cinco faculdades incompletas e abidicou dos estudos quando decidiu escrever.
Assim como Carlos, seu avô estreveu apenas livros sem sucesso. Tá, um teve certa repercução, "O fogo que escorre de mim", chegou a ganhar um prêmio: a pior obra de ficção de 1997.
Porém nesta manhã era diferente, saido da loja de roupas, com todo o visual novo, decidiu comprar um barbeador e um desodorante - artefatos dos quais ele havia abidicado faz tempo.
Passou a se alimentar de fast-food, nada mais de regimes indus - agora ele queria carne.
Chega de socialismo, ele queria comprar e comprar cada vez mais.
No fundo, ele chegou a conclusão que era estranho. Mas foi bom, pelo menos ele se aceitou. Ele era um perdedor, mas quem se importava com isso?
Qual era o nome dele mesmo?

7.11.07

sobre o outro lado da cama.

O lado direito da cama ainda estava quente, Roberto havia saído há pouco tempo: ele havia ido embora para sempre (pelo menos era o que sua carta dizia). Beatriz ainda possui duas deliciosas horas de sono antes do seu infernal despertador tocar durante alguns eternos segundos.
"Bia, Vai ver que um dia você intenda meus motivos, mas eu tive que ir embora. Não se desespere, pois você merecia algo melhor que eu. Talvez eu nunca tenha te contado, mas meu amor por você nunca foi verdadeiro e minhas palavras eram apenas uma forma de lhe iludir. Querida, eu sei que você irá chorar e me odiar pelo resto da sua vida, só que eu não queria mais essa vida de mentiras, sim, eu te trai e por isso não consigui mais aguentar essa dor. Roberto."
Ele imaginou que a carta a faria chorar e mais do que isso, ela se sentiria tocada pelas palavras e não ficaria tão magoada. Ele imaginou, apenas.
O relógio tocou, Beatriz esfregou os olhos algumas vezes para desenbaçar a vista, desligou o relógio e viu ao lado desse um bilhete escrito às pressas. Ao sentir o outro lado da cama vazio, já imaginou do que se tratava, não abriu a carta, não a leu. Ela não queria escutar pulsar nos seus ouvidos as verdades que ele queria falar.
Ele havia ido embora, e para ela foi só mais um fato do cotidiano.

6.11.07

sobre João.

Ele refletia sobre aqueles três últimos passos; olhou ao seu redor e percebeu que apenas ele e Deus compartilhavam aquele momento; deixou a brisa bater contra o seu rosto; fechou os olhos para não deixar uma lágrima escorrer; sorriu um sorriso nervoso e último; abriu os braços como se pudesse abraçar toda a cidade; estufou o peito com todo o ar que podia; sentiu que era a hora.
Com uma firmeza invejável, João deu aquelas últimas passadas e se jogou de cima do imenso aranha-céu onde trabalhava. Aquele filme da vida passou em sua cabeça - a infância em uma cidade pequena, a vinda para São Paulo, a falta de sossego, a traição da mulher, os filhos queridos, os pais, a bebida, o emprego bem-sucedido -, de repente uma imagem veio à sua lembrança: uma foto antiga tirada com toda a família em um Natal feliz. Foi então que ele entendeu a dor que sua família iria sentir com o seu ato, a falta que ele iria fazer, as lágrimas de sua mãe.
Angustiado elevou os olhos para cima, Deus continuava compartilhando o momento, mas não podia intervir na decisão do pobre homem: não havia volta.
Pediu desculpas para si mesmo; colocou a mão no coração que pulsava quente; estava com sua alma vazia; seu voou havia chegado ao fim.
Era Natal outra vez.

5.11.07

sobre lembranças.

Era uma tarde nostálgica - o sol custava a passar pelas nuvens-tom-de-chuva, o vento gelado colidia nas janelas de metal fazendo um uivo fantasmagórico, as árvores do quintal deixavam parte da sua copa voar mundo a fora, nenhum vestígio de vida ultrapassava as paredes daquela casa imensa onde morava, o seu quarto branco parecia cada vez menor, uma densa fumaça saía do escuro chocolate-quente que Clarice segurava enquanto se aquecia debaixo de suas várias cobertas.
Ela não pensava em nada, só estava ali olhando as ondas ínfimas dentro da sua xícara colorida, mas ela queria sentir: sentir o abraço de seu pai distante, a alegria de sua mãe falecida, as risadas dos irmãos mais velhos, o beijo do marido que não tinha.
Fechou os olhos, sentiu o calor da bebida que esfriava a sua frente, abriu os olhos, tomou um gole, sentiu toda sua garganta quente, amarrada.
Era a vontade de chorar, um choro sozinho, profundo e lindo como a manhã que se punha lá fora.

4.11.07

sobre coleções.

Aqui em casa, as coleções sempre inundaram minha casa. Cada época da minha infância junto com a do meu irmão, trouxe para aqui dentro um tipo de acervo diferente. Primeiro de tudo foram as moedas que não se acabavam mais, eram antigas, de outros países ou até mesmo atuais que, posteriormente, se tornaram lucro para a banca perto da escola.
Meu irmão desistiu do dinheiro de metal e passou a colecionar selos à todo vapor - conseguiu um escambal desses de outra nacionalidade, mas ainda assim a maioria era estampado pelos ritmos, frutas, paisagens e cores do Brasil.
Superado esse vício, começamos com os tazos - que viraram mania nacional -, a gente tinha um monte, quase uma caixa. O mais legal não era a coleção em si, mas era trocar os repetidos e, quando a troca não era feita, disputá-los 'batendo'. Nossa, como era demais! Se bobear, eu ainda tenho uns desses por aí.
Entre uma coleção passageira e outra, vinha aquela que todos já experimentaram pelo menos uma vez: as figurinhas. Fossem da Copa, de desenhos ou aqueles que vinham juntos com outras revistas, eles sempre marcavam presença aqui em casa aos montes. Novamente a diversão era outra: 'bater' todas as figurinhas repetidas, fosse uma normal por outra normal, três normais por uma brilhante ou uma brilhante por uma brilhante, o importante era sair com o monte maior do que no começo do jogo e, melhor ainda, era 'rapelar' o oponente.
Pelo jeito, as figurinhas percorrem os anos, não importa quando, mas basta ser lançado um novo álbum para um monte de gente adquirir o seu e começar a colecionar denovo. E não importa a idade, essa mania pega todo mundo, digamos que é um vício nacional.
Se você nunca colecionou umas poucas e boas figurinhas desculpa, mas sua infância foi recheada de quê?

3.11.07

sobre palavras.

Na sua ânsia por ler, ele esqueceu o mundo e todos os seus medos. Nada poderia lhe estragar a aventura que era mergulhar nas páginas cheias de vida daquela última edição do seu livro mais querido. Está certo que já o havia lido várias outras vezes, mas a cada nova leitura, os fatos pareciam transcorrer de uma nova forma desejavelmente deliciosa.
Agora, deitado naquela velha cama de mogno que fora do seu tio também, ele relia todo o prefácio daquela edição mais nova do seu preferido. Pela janela vinha um canto de pássaros que ele nem se quer notou que cantavam: o mundo estava estagnado para vê-lo ler.
Virou a página, o coração pulsou mais sangue que o normal, o suor frio molhou todo seu rosto moreno, os olhos negros se fixaram na página, ele não sabia, mas estava amando, amava de corpo-e-alma: as palavras eram suas novas amantes de cada noite sem dormir.

2.11.07

sobre mulheres.

Mulheres são razoavelmentes difícies de se entender, isso é fato comprovado pela ciência (ou não comprovado, mas continua sendo uma verdade).
A começar pelo humor inconstante que varia, num mesmo dia, de caras irritadas à sorrisos avassaladores. Sem contar as benditas TPMs que podem acabar com qualquer relacionamente estável.
Basta não gostar de um detalhe da sua roupa ou do seu cabelo ou da sua pele, que logo se torna um caos, "MEU DEUS! O QUE É ISSO, QUE HORROR!" - horror mesmo são os gritos e xiliques que elas dão sem motivo nenhum.
Falando em roupa, caramba, mulheres conseguem combinar cinco cores diferentes na mesma roupa, enquanto eu não consigo sair do preto-e-branco ou jeans-e-camiseta ou claro-e-azul. E mesmo assim, basta você não combinar a cor da meia com o cinto pro mundo cair de novo, "VOCÊ NÃO SABE SE VESTIR?" - e é numa dessa que o bom-humor feminino se desfaz denovo.
O pior é a hora de dar presentes - mesmo que você se esforce, se você não for escolher com sua mãe, desista você não vai achar um bom presente.
Primeiro, falemos sobre os chocolates: hoje ela está doida por um bombom, amanhã você a presenteia com um e vem a pergunta fatal "Por que você me deu chocolate? Eu estou gorda?" - mais uma vez ela estará mal-humorada.
Os perfumes são outros presentes de lua, umas adoram aqueles de aroma super doce, enquanto outras detestam - logo, não dê perfume, vá por mim (a não ser que ela diga que quer ganhar tal fragrância).
O incrível é que menina sempre acerta o presente das amigas, pode ser a coisa mais estranha, mas elas sempre se intendem. Outro dia, uma amiga minha ganhou uma agenda personalizada (!) e, por mais controverso que pareça, ela amou a dita e odiou um perfume importado que ganhou de um amigo (!²)
Os complexos são outros causadores de mal-humor chegando até fazer umas não sairem de casa. O mais comum é, na adolescência, a fase do "Eu sou feia!", não adianta falar milhares de coisas e elogios, elas não conseguem acreditar que elas são bonitas e que, particularmente, você que falou um monte, está muito afim dela. Superada essa parte, vem "ninguém me quer!" e você vê mais uma porta aberta e começa a falar para ela que tem muita gente que a ama e que faria tudo por ela, mas mesmo assim ela não intende que você está afim dela. Por fim, você se stressa com as milhares fases dela e acaba caindo na última, "ele pediu pra ficar comigo, será que eu fico? E se estragar a amizade?" - nessas horas é a vez dos homens ficarem mal-humorados.
E no fim, por mais manias e crises que tenham, elas continuam fazendo o mundo parar.

1.11.07

sobre aquela velha sensação.

Por mais que eu tentasse me concentrar na aula, minha cabeça latejava ardidamente, me tirando toda a vontade de estudar; meus olhos antes aguçados, perdiam seu vigor lentamente.
"Você está com sono, durma mais cedo amanhã!", eu me repreendia enquanto minha mão perdia a vontade de escrever as palavras postas no quadro-negro.
Eu tentei, juro que tentei. Permaneci o máximo que pude na sala de aula, pois faltavam poucos dias paras as provas e toda informação era importante. Mas entre a 4ª e 5ª aulas eu saí da sala em uma jornada - quase cambeando - até a enfermagem.
- Cecília, por favor, não dá mais.
- O que você tem, Fernando? Credo, parece que vai morrer.
- Estou quase. Não sei o que é, mas no começo parecia sono, mas agora eu mal consigo me levantar da maca!
- Ai ai, quanto drama! Você está doente.
Doente? Não podia ser! Faltava um dia para o meu aniversário e eu estava do-en-te?
- Que ótimo, o melhor presente que eu podia receber!
- Levante o braço, vamos ver se você está com febre.
Depois de alguns minutos com o termômetro do suvaco, veio o laudo:
- Nossa! Você está com 38,5º de febre!
- Melhor ainda! Tem um remédio ou está dificil?
- Nem doente você pára de ser irônico?
- Você sabe que é dificil negar as origens.
Ela não riu.
- Toma seu remédio.
O gosto amargo infestou minha boca e percorreu toda minha garganta inflamada.
- Droga! Tinha esquecido quão ruim é essa porcaria.
Agora ela riu.
- Vou ligar para sua mãe vir te buscar.
- Tudo bem. Ela deve estar com o celular. - "Pelo menos vou perder umas aulas!".
Depois de alguns minutos que custaram à passar, Dona Bernadeti, minha mãe, chegou no colégio à minha procura. Eu já estava sentado na escada principal a esperando. Em uns vinte minutos eu já estava deitado na minha cama.
- Calma, filho, daqui uns dias você vai melhorar.
- Dias, mãe? E minha festa?
- A gente pode adiar.
Eu não tinha muitas energias para debater com ela naquele momento e acabei aceitando a decisão.
Fazia tempo que eu não me sentia assim: eu estava com gripe e era daquelas que vêm para estragar seus planos do final-de-semana.

E meu aniversário? Ah, foi ótimo, cheguei aos meus dezesseis anos, tomando sopa de galinha no quarto. O-B-A.