30.4.10

pássaros negros.

"está bem? tudo bem?"
grito e, ao meu redor,
não encontro resposta.
nessa estrada escura,
nessa noite densa,
os pássaros negros
estão sempre calados.

toco uma árvore.
um deles voa.

olharei para trás,
temo, eu-animal-aflito.
"está bem: está vivo"
digo aos meus que deixei
no caminho, aos relicários,
aos moinhos que em cada
ventaval me carregaram
mais e mais ao infinito.

e agora sigo.

"está bem?"
estou mal, me reerguendo.
estou perdido, mas sigo.
sigo por que é minha sina,
minha forma de permanecer
vivo e de olhos aflitos.

se parar, um dia me alcançam.
não quero andar a dois,
não quero espreitar essa noite
longamente escura em bando.
quero seguir comigo.
quero seguir em mim.

preciso tocar as árvores
e contar as aves negras
que voam só, comigo.

e Você que me olha do alto,
que me pede a mão para segurar,
segure. segure-me. empurre-me.
mas não deixe que eu saiba,
seja discreto, seja noturno.
seja uma ave rondando minha cabeça.

não me deixe sentir marionete,
prenda-me com fios de ouro,
com fios de éter, talvez.
quero uma sensação de liberdade.
livre, livre, preso.

segure-me, enquanto sigo
imaginando estar sozinho,
num silêncio denso tão maior que eu.
num silêncio amargo, num silêncio.

nesse silêncio que aprendi a amar.

Eu Sou O Silêncio.
choro.

- está bem? tudo bem?

a ave mais negra, mais soturna
cai em minhas mãos,
apertou-a, uma pena se solta
e a dor parece estremecer
toda terra: sou eu.

se estou bem?
não. estou seguro,
mas sigo.

19.4.10

codinome.

o problema do desamor
não é ficar perdido ou
deveras encontrado.

há sempre uma dança
de cosmos que recola
cada estrela em seu
devido lugar.

o erro do caminho,
se o pé pisa fora do trilho,
se tudo vai errando e
se concretizando, assim,
tão tortamente belo.

o problema do desamor
não é a completude que
parece não chegar.
um dia estar completo
perde totalmente o sentido.
(por mais incrível que possa
parecer-me, aprendemos que
estar vazio é a melhor forma
da nossa arte).

o desamor não é frágil,
nem deseja que assim sejamos.
o desamor é uma força
que não temos,
mesmo de coração inteiro
- quando podemos ofertá-lo?-

não pede que brinquemos,
não pede que sejamos.
não pede, não pede nada,
mas oferece.

oferece um quinhão que
vale tanto quanto toda
riqueza desta vida.

um peso em a-ouro,
uma jóia desprezada:
o desamor segue na calmaria
das águas em pedras.

e separam a nova paixão
das corrosivas marcas
do desamor.

mas esse não é o problema.

o problema não está em nós,
nem tranzpassa-no.

o problema vai além,
caminhando só nas avenidas
caladas do universo.
o problema é maior,
muito maior que o depois,
mas não podemos vê-lo.

somos pequenos, aprendizes.
somos codinomes.
somos a fagulha e não podemos
ver completamente tudo.

o problema do desamor é toda
a sua imensidão.
não podemos conhecê-lo,
sem antes senti-lo um pouco.

e o pouco do infinito é imenso.
e o imenso é a falta que carrego.

13.4.10

mulheres de atenas.

A luz, que ofuscava os olhos marejados, apaga-se. É um quarto bonito, cheio de pequenas porções de vida: a bailarina que dança dentro da caixinha de música, os garotos de porcelana que sorriem, a foto do casal amável no porta-retrato sobre a mesa de canto, a frágil Stela que inunda o travesseiro com suas lágrimas. No breu calado da noite, as cigarras gemem prazeres e existências curtas, enquanto as poucas nuvens brincam de se entrelaçar.

- Calem-se! Morram, cigarras! Morram! Me deixem só! - grita a mulher; as palavras, porém, saem misturadas aos soluços histéricos de seu choro, criando uivos melancólicos.

O quarto ecoa todos os seus sons e, ao longe, quando colidem e tornam-se apenas uma harmonia, Afrodite toca lira e banha-se nua numa cachoeira límpida. Em seus olhos azuis reside uma tristeza profunda: a morte de um semi-deus amado. Sua voz soprana encanta todos os animais da floresta, juntos sobre pedras para escutá-la.

As pequenas cigarras gemem prazeres e existências curtas, enquanto as lindas nuvens de verão brincam de formar corpos entrelaçados.

- Cantem! Cantem, cigarras! Cantem! Não me deixem só! - Afrodite chora e seus soluços tão solenes são poesia no vento.

A deusa compõe o seu minueto mais bonito, enquanto dois cortejos voltam para suas casas em outras estradas: um em São Paulo, outro no Monte Olimpo. O semi-deus trajando vestes de guerra está sepultado em cova rasa; o marido de Stela, vestindo seu terno mais bonito, em cova cara e de família.

A viúva, neste planeta de injustiças, não sabe tocar lira, nem flauta, nem piano, muito menos harpa. Não sabe cantar, tem vergonha de falar em público, não gosta de estar rodeada de conhecidos. Sozinha, no escuro de sua casa, dilacera sua alma em gritos e frases de amor. Os animais da floresta, porém, não vêm para abraçá-la. Só as cigarras cantam.

Ah, as cigarras sempre cantam!

- Calem-se!
- Cantem!
- Me deixem só!
- Não me deixem só!
- Por favor,
- Eu imploro:
- Volta, Hélio!
- Volta, Aquiles!
- A vida,
- Sozinha aqui,
- Não tem sentido...
- Não tem sentido...

Elas clamam pela volta dos amados, mas não há regresso. Hades carrega o herói; a noite profunda das pálpebras, o homem de negócios. Elas clamam e rasgam a mansidão da madrugada fria; ouve-se apenas o silêncio de alma partida. O silêncio pesado de quem acredita haver conserto para o erro do destino. Mas não se pode fazer nada, além de derramar lágrimas (muitas, muitas, muitas lágrimas).

A voz suave e melancólica de Afrodite, ao descer para a Terra, difunde-se com outros timbres, inunda o quarto escuro, através da canção amarga que se repete no rádio. "Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas", "As jovens viúvas marcadas não fazem cenas, vestem-se de negro, se encolhem, se conformam e se recolhem às suas novenas serenas".

A voz suave e melancólica de Chico Buarque, ao subir para o Monte Olimpo, reparte-se: a metade mais carregada de sentimentos escorre dos olhos de Afrodite. O restante torna-se palavras de consolo proferidas por Zeus. "Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas", "Quando fustigadas não choram, se ajoelham, pedem, imploram mais duras penas - cadenas". A sua voz rouca machuca mais do que acalenta.

Faz doze anos que, por causa da carreira acadêmica, Stela saiu da Grécia para estudar no Brasil. Faz cento e trinta e dois meses que, por causa de um amor frenético, Stela casou com Hélio. Faz vinte e três horas que, por causa de um acidente terrível, Stela perdeu vontade em viver.

Agora, as suas lágrimas inundam o travesseiro e o sangue de seus pulsos, todo o mundo com sua cor vibrante. Seria demais suportar uma existência solitária, não estava preparada para ser viúva, para deixar partir o homem amado de sua vida. Há vertigem na morte, mas há conforto; há um turbilhão de cores e sentimentos que só ela pode sentir. Deixar a vida é tão incerto quanto vivê-la.

As cigarras param de cantar. Os soluços histéricos cessam. O corpo parece imerso em neve.

- Cantem, cigarras... cantem... não me deixem só...

Depois de tanto, Stela está voltando para Atenas e irá deitar-se no colo amigável de Afrodite. As duas, mãos dadas e sorrisos graciosos, irão compartilhar suas desilusões amorosas. Quando cansadas do passado, amarão outros titãs. Se entediadas, tocarão minuetos lindos para mulheres desesperadas. Na Terra, porém, haverá sempre uma canção em choro de cigarra, tragédias gregas e um conselho a ser ouvido: mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas.