8.9.10

evocações e vozes.

Não posso falar de Recife,
de uma Rua da Saudade
onde meninos cheios de pernas e sorrisos
se escondiam pra acender palha e fumo.

não posso falar de outras ruas de nome bonito,
porque por aqui as ruas tem nome de gente.
de gente que não me evoca lembranças,
mas confusões:
nunca soube quem foram,
melhor seria que chamassem as ruas:

"Rua da casa da vó"
"Rua do vendedor de doce"
"Rua do primeiro amor"

e de rua em rua veria a vida renovar
meus gostos pela saudade.

Não posso falar de Recife,
não posso chamar suas areias de minhas.
nem cantar com suas meninas,
pois nunca estiveram comigo,
nunca as toquei, nem li seus olhos.

Mas posso falar de uma selva de pedra,
outrora matas e sol sobre os ombros:
Campinas...

- não brinca na rua, é perigoso.
- não saia da escola.

não sei o que é infância na rua,
chicote-queimado? nem me ocorre como brincar.
mas já pintei o chão de giz,
já subi em árvores,
já chupei uva do pé.

me sufoco com cheiro de terra molhada,
a terra molhada por debaixo das unhas.

chuva e sol. e ventos. quatro ventos
a evocar minha infância.

no meio da selva de pedras, um reduto à imaginação.
Casa da avó. Rua do Sr. Leite, seja lá quem tenha sido.
"Rua da Saudade", minha rua da saudade.

almoço de domingo.
imensos braços italianos sobre a mesa, sobre as cabeças,
giganteando pequenos causos.
suco de limão tomado da cumbuca da salada,
a careta de quem repetirá o feito enquanto houver limões.

formigas e descobertas - aquele quintal imenso,
em que adormecia o poeta que hoje sou.
policiais. prisões. brigas. "deixe-minhas-formigas-em-paz".

nunca soube mexer na máquina de costura,
não sei fazer barra de calça, nem tirar medidas de paletó.
aprendi depois a remendar o coração,
mas pra isso não tem tutor prendado, precisa-se viver.

naquele tempo, poesia era ouvir minha avó,
sua voz mansa, ainda me lembro...
- dá um beijo na vó.
- pega a uva na geladeira, esse ano deu umas docinhas.

e a língua era linda e cheia de graça,
as histórias eram lindas e cheias de graça,
sonhar era lindo... não que ainda não seja,
mas de graça tudo sempre se esvazia.

Foi há muito tempo...

a vida cheia de mistérios... mistérios que hoje são claros
como alvas pedras de calçada portuguesa.
eu pulava pedras irregulares, hoje vejo andorinhas
(no céu, no chão, sabe-se lá por onde voam)

Campinas...
"Rua da Saudade"...
a certeza do fim não é tão amanhecida pra crianças,
tudo é tão impregnado de eternidade,
de luz e certezas de amanhãs bonitos
(porque ver o sol raiar é sempre um encher
os olhos de água).

cemitério da Saudade...
diria o poeta: "Recife morto".
dizem minhas vozes: "saudade viva",
porque penso sempre na vida, no que pulsa, no que me segue.
e prendo as lágrimas.

não falo de morte, não acredito que a gente morra
dentro dos outros.
ou eu que não deixo morrer o poeta
que adormecia quieto no quintal imenso da casa
na rua Sr. Leite - sabe lá quem seja.

na minha Rua da Saudade,
eterna.

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