não gosto de cigarras:
suas cascas amareladas pelo caminho,
seus gritos rangendo pelo mundo.
não gosto de cigarras:
essas estranhas máquinas-vivas
de chorar por debaixo das copas
das imensas choupanas orgânicas.
e elas choram desesperadas:
rápido e lentamente.
alternando esse arder no ouvido.
choram como se sentissem
a morte chegar em seus peitos.
e lá cigarra tem peito?
tem coração? tem alma?
cigarras não sentem, não sofrem.
choram apenas por ser-lhes
a missão da existência.
rompem a história calma e leve
das horas com seus urros.
eu não.
eu tenho peito.
eu tenho coração e tenho alma.
eu sinto e sofro.
eu também urro por debaixo
dos choupos imensos de mãos
caladas e pesadas que me carregam
na história da vida.
urro porque sou gente e carrego
um aperto, um nó, um erro comigo.
mas eu não grito rangendo no mundo,
não exponho no ouvido dos outros
meu sofrimento.
calo-me:
expor essa chama que me consome
como se fosse fumaça e bruma
em mar calmo de manhã cinza
dói deveras mais.
cigarreio dentro, no fundo,
no calado, escuro, avesso de mim.
cigarrearei manhã e madrugada à dentro.
e quando o sol aparecer manso
por entre os cumes que me aprisionam;
quando o vento de paz correr
por entre mim e as cigarras,
levando consigo essas memórias finas e leves
que me embalam e entorpecem como seda.
quando eu estiver nu de ti,
nu de mim, olhando o mundo amanhecer
atrás da janela fria,
ouvirei um urrar de cigarra,
que talvez só retumbe no meu quarto.
ouvirei tua voz.
haverá um urro no urro, no urro, no murro
no muro que reside em mim.
minha alma urra.
quantas dessas cigarras
que cantam vida à fora
são almas pedindo socorro?
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