13.1.10

olhos fundos.

Veio do horizonte, com os olhos fundos, carregando uma mochila nas costas - de longe, parecia mais velho. Tinha uns quinze anos: nem barba no rosto. Mas os olhos fundos. Trazia os olhos fundos, como um homem de história longa, um sofredor em pequeno porte. Um sofredor, sob o sol do meio dia, suando, o uniforme da escola amassado na parte de baixo da camiseta. Amassado nas mangas, amassado por inteiro, rasgado. E isso me espantou: rasgado. Tinha porte de garoto rico, um andar de quem frequenta a praia de Copacabana. Nem imagina o que é pisar na favela. Um doutor, um freguês, um homem do carro de vidros escuros com a camiseta rasgada: um contraste muito sutil quanto uma estrela, mesmo depois de amanhecido, brilhando no céu.

E veio chegando mais perto, o sorriso fechado, os punhos cerrados e os olhos... fundos. De repente, cuspiu e saiu-lhe vermelho. Assustei, porque somente foi por isso que reparei o sangue velho no joelho, o corte por detrás do rasgo na camiseta e um inchado na sobrancelha. Agora parecia um lutador, não mais um sofredor, como se tivesse saído a pouco do ringue, ainda ostentando as marcas de uma boa vitória - ou uma amarga derrota? Lutadores sempre tem o mesmo olhar amedrontador, independente do que estejam vivendo. Parecem  não amar, ter uma alma pequeniníssima que caberia um envelope. Por mais que muitos tenham no peito um coração do tamanho do mundo, jamais saberemos apenas olhando em seus rostos. Sempre sérios... sempre amargos... sempre feridos. Ele estava ferido, um pouco - o suficiente para um garoto que nem sabe o sabor da vida, nem imagina sua gastronomia... o agridoce que poderia fazer com a tristeza e a alegria.

E cortou o nosso espaço - meu e de meu parceiro, um preto velho sempre mascando um fumo, que me parece a coisa mais nojenta do mundo. Como se ruminasse gramíceas, sempre, sempre, os lábios mexendo, um bafo de algo meio podre. Um bom sujeito. Sempre aparecia por esse horário, com uma muda de roupas suja de graxa e umas histórias ótimas de seu tempo de mocidade, das atrocidades do exército. Ele também fora um lutador... olhos fundos... sério... amargo... às vezes ria e mostrava os dentes amarelos. Um bom  contador de histórias. Sempre pedia um café bem forte, um copo americano de café e ficava comigo avaliando a vida que por ali passava.

Naquela manhã falávamos sobre o garoto, posto a nossa frente. Era mais alto e mais moreno do que há uns metros, era maior o galo perto da sobrancelha, era mais profundo o rasgo na barriga, era mais feio o ralado no joelho. Até aquele momento, fazíamos apostas do que acontecera. Para mim, fora briga por mulher. O Zé, tomando um outro gole gigante de sua bebida amarga, não concordava - para ele, tentativa de assalto. E discutímos até ele chegar, parar, por a mochila no chão e calar-se. Sem mais nenhuma aposta, esperávamos qualquer coisa que viesse dele. O rosto pesado, fechado. E os olhos - que logo reconheceram os do meu velho de guerra ruminando... ruminando.

- Tem água? - e a voz era uma mistura entre estridente e grossa, fingindo se impor sobre nós.

- Gelada, guri?

- Água quente não presta.

- Tá certo. Pega lá na geladeira. Um e cinquenta, a garrafa.

Tirou a carteira da mochila, deixou o dinheiro certinho sobre o balcão.

- Guri, responde uma coisa: tu apanhou? - e cuspiu o fumo.

O garoto parou um minuto, o passo desenhado nos pés pausado, respirou. E os olhos se petrificavam um pouco mais quanto maior a raiva da pergunta. Ele fora derrotado e, como vingança, deveria surrar-nos, deixar-nos no chão, contando os cacos que sobrariam inteiros... mas não poderia - era mais novo, era apenas um, com os olhos tentando camuflar inocência. Cheio de raiva por não conseguir ganhar de uma simples pergunta feita por velho - sentado num banco tosco numa loja de conveniência de um posto de gasolina pequeno. Um garoto de Copacabana não era nada perto daquelas palavras. Apanhara. Levara uma surra no seu ego gigante, estava com a alma para ser selada num envelope pequeno. Mal lhe restava algo. Fingiu que nada havia sido dito, abriu o refrigerador, pois uma garrafa no olho, pegou a mochila, abriu a porta e acenou com as costas da mão para nós, como uma despedida - fria. Deixava o nosso ringue. Aceitava a derrota como seu único prêmio da manhã e partia para o mundo, para o seu mundo real muito além daquele posto de gasolina. Mesmo depois de sair, olhou para trás uma última vez... sério... amargo... ferido. O olho direito, por detrás da garrafa translúcida, parecia mais fundo do que nunca, como se pudesse engolir seu rosto. Fundo como uma ferida na alma.

E foi-se embora.

2 comentários:

Juka disse...

Já comentei nesse conto, mas no blog que já não existe mais.
Só que não pude evitar de comentar novamente: suas descrições são fantásticas!

Já to aprendendo muito com você, obrigada! (:

Fernando Franco disse...

muito bom! descrições perfeitas
passa lá no meu!