24.4.08

quadrilha.

É a primeira vez que escrevo, antes só representava. Não sou ator, por aqui não existe essa coisa, vai ver por que todo mundo é um pouco disso. Eu moro entre a capa e a contra-capa de um mundo perfeito que vocês, humanos, pintam, colam, desenham, criam e leêm: o Mundo dos Livros.
Todavia, o fato é que nunca fui dos personagens mais queridos: sempre deixado de lado e um pouco esquecido. Disseram-me que não sofro de antipatia, mal-hálito ou feiura, meu problema é falta de enredo (eu sou aquele que acaba com o amor platônico nos últimos momentos). Pensei em mudar de rumo e cheguei a fazer umas pontas como mocinho, só que não funcionou, perdi o papel, o cachê e o pouco de fama que tinha. Fracassei também como bruxo, irmão mais novo e padre.
Cheio de frustrações na mala e vazio de expectativas, decidi voltar para a casa dos meus pais em Itabira. A viagem foi longa e exaustiva: cheia de frases mortas e outras personagens frustradas voltando para suas casas (no caso das palavras, iam parar no lixo doméstico de quem as proferiu um dia). Como na maioria dos casos, eu não fui bem recebido, não houve festa, surpresa ou afago, pois, por aqui, ter um filho rejeitado por todos os autores é muito vergonhoso.
Não suportei os olhares tortos e decidi fugir. Numa madrugada enquanto todos dormiam, executei o plano. Fui embora com dinheiro, sem orgulho e sem sonhos - estava em branco para qualquer oportunidade que aparecesse. Não apareceu. O pouco dinheiro que tinha pego antes de sair já estava acabando, não tinha mais como pagar hotel e passei a dormir num canto muito escuro debaixo de uma ponte.
Era outono quando ele apareceu e se compadeceu de mim - eu dormia coberto de papelões. Primeiro, perguntou meu nome e o que fazia. Eu, acordando do sono, respondi o mais educado possível. Sentou-se ao meu lado quieto, como se pensasse. Me disse que era escritor e iria me ajudar - com dinheiro, casa e comida? Não, com histórias. Pegou seu bloco, uma caneta que levava no bolso e começou a escrever linhas e linhas.
- É um poema pequeno, mas dá pra viver dele! - me disse após entregar o rascunho e antes de partir para sempre.

Caro Carlos Drummond de Andrade,
Sei que muito do que foi escrito aqui já é de seu conhecimento, mas era minha hora de retribuir o seu favor (não sei fazer poesia, mas aceite minha humilde prosa). Ainda sou grato àquela noite, na qual minha vida mudou completamente. É confortante saber que parte do que sou, foi construído por tão grande autor.
Acho de bom tom dizer-lhe como andam os outros: liguei esses dias para o João que confessou adorar os Estados Unidos. Ele também casou e teve dois filhos (Eduardo e Luísa). Já a Teresa nem pensa em marido - continua firme e forte no convento com seus terços e ave-marias. Outro dia, visitei o túmulo do Raimundo e do Joaquim, deixei flores e um pouco de saudade. Eu e Lili continuamos casados e muito felizes.
Com grande carinho,
J. Pinto Fernandes.


baseado no poema "Quadrilha" de Carlos Drummond de Andrade.

Nenhum comentário: