29.11.07

sobre sobreviver.

[PROPOSTA DE REDAÇÃO B - UNICAMP 2008]

Seguro, entre as palmas estaladas de minhas mãos, a folha que eu gostaria de rasgar e fingir ser só mais um pesadelo: é um diagnóstico, o pior de todos. É por ele que confirmo todas as minhas cruéis expectativas sobre a minha saúde e o meu futuro. Me aproximo de uma cadeira da sala, sento e choro toda a minha alma, pois ela já não vale nada. Sei que se eu acordar amanhã, terei um dia difícil pela frete, dói ser diferente num mundo preconceituoso e é pensando no amanhã que meu peito aperta. Leio e releio aquela carta do médico e me sinto cada vez mais medíocre, "E depois de tantas coisas boas e antes de tantas outras, minha vida tem que acabar assim? Porquê?" - eu grito aqui dentro da alma onde só eu posso escutar. É difícil aceitar essa realidade que enfia a faca no meu peito aos poucos e ri enquanto agonizo: eu morro por dentro, mas preferia morrer por inteiro - não quero aguentar me olhar apodrecer pelo espelho. Escorre uma última lágrima pelo meu rosto pálido e gelado: eu tenho AIDS.
Já está tarde o suficiente, me recosto no sofá confortável e durmo - eu mereço dormir depois desse soco no estômago.

Acordo no outro dia e sinto o gosto da verdade na boca - é amargo, quente e definhador, um suco denso que vou tomando aos poucos. Não me sinto bem, minha cabeça está rodando alucinadamente e desejo ficar em casa, mas não posso: uma pilha de processos pretendem passar pelas minhas mãos ainda hoje.
Me arrumo e fingo pra mim mesmo que tudo acabará bem. Saio de casa e dou uma boa fungada de ar puro, seguro-o por algum tempo dentro dos pulmões e depois solto aos poucos. Pego o ônibus e vejo num canto a placa "Lugar preferencial para idosos, gestantes, deficientes fisicos" e pixado à mão embaixo "aidéticos sintam-se a vontade." - me dá náuseas, a minha vontade é de gritar e chingar cada um que está nesse veículo, mas não o faço - eles não tem culpa.
"Ninguém nunca tem culpa, merda." eu me conforto enquanto, em passos pequenos, envergonhados e decisivos me sento numa das cadeiras especiais. Me olham, uma mãe comenta com a filha - "ele tem aids" -, um velho, antes sentado na minha frente, se levanta e mantém distância. "Aids não passa assim, meu senhor" tenho vontade de dizer-lhe, as palavras se calam antes de chegarem à boca.
Um a um, aquele ônibus se esvazia e volta a se encher, só uma coisa é constante: os olhares de nojo que se apontavam para mim. Não desci no ponto que deveria, não vou mais para o trabalho - quer saber? a papelada do governo que se exploda, eu vou cuidar da minha vida.
Eu grito, dessa vez o som sai e todos ouvem:
- Cuidem das suas vidas, seus vermes imundos.
Ouço uns murmúrios de risos, mas logo param.
O ônibus chega no terminal e todos descem, eu espero um pouco.
- Ei moço, você precisa descer. - o cobrador me avisa.
Eu levanto, olho as pessoas passando apressadamente do lado de fora, chego na porta.
- Desculpa, moço. - o cobrador se justifica.
As palavras martelam minha cabeça sem dó - "Desculpa pelo quê?". Não respondo, pois não há o que dizer. Abaixo a cabeça, olhos os degraus e desço do ônibus. Escuto meu coração bater quente no meu peito machucado, eu suo e minhas pernas tremem em aceitar a realidade: daqui pra frente eu estou sozinho, mas levo comigo a certeza que o meu dia seguinte pode não chegar.
Eu choro.
Eu tenho AIDS.
Eu sobrevivo.

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